Ninguém deve ficar indiferente, e nós, médicos, não ficamos.
A generalização dos conflitos militares, um pouco por todo o mundo, está a banalizar o sofrimento humano e, pior ainda, está a normalizar a ideia de que o terreno médico e hospitalar pode ser usado como palco da guerra. Não pode. Dizem as Convenções que nos defendem de uma lógica militar onde vale tudo, até fazer de ambulâncias, hospitais, médicos e vítimas, alvos das guerras que se têm multiplicado. Por fim, solidarizamo-nos com todos os médicos que trabalham em teatros de guerra e apelamos ao cessar-fogo.
Mariupol e Gaza, na Ucrânia e na Palestina, são os casos mais recentes, mas na curta vida do século XXI já testemunhamos a brutalidade da guerra no Afeganistão, no Iraque, no Líbano, na Geórgia, na Líbia, na Síria, no Iémen, na Arábia Saudita, na Tunísia, na Turquia, no Níger, no Azerbaijão, no Uganda, na República Democrática do Congo, nos Camarões, no Paquistão e na Etiópia. Se fizéssemos o mesmo exercício sobre o século XX, esta lista seria penosa e interminável.
No Hospital Pediátrico de Mariupol, no Oblast de Donetsk, e recentemente no hospital Al-Shifa, na cidade de Gaza, são dois exemplos que não devíamos nomear e que não deviam ter acontecido, à luz de todas as Convenções que colocam limites à barbaridade da guerra. Em todos esses locais onde a força das armas tem impedido a paz, a Saúde é a primeira vítima e, com ela, ambulâncias, hospitais, médicos e demais profissionais da Saúde, que dão tudo de si arriscando a sua própria vida para salvar quem possa ser salvo, são considerados alvos militares e tratados como tal sem qualquer pudor.
Não foi preciso esperar pela segunda, terceira e quarta Convenção de Genebra para que, desde a primeira, em 1864, se tenha estabelecido a ordem de respeitar e cuidar dos militares feridos ou doentes sem discriminação, bem como proteger as ambulâncias e os hospitais de todo ato hostil. Para o efeito foram estabelecidas quatro regras: “a imunidade de captura e destruição de todos os estabelecimentos para o tratamento de soldados feridos e doentes; a receção e tratamento imparciais de todos os combatentes; a proteção dos civis que prestam socorro aos feridos; e o reconhecimento do símbolo da Cruz Vermelha como meio de identificação de pessoas e equipamentos”.
Na versão da Convenção de Genebra que vigora hoje, os pontos 8, 9 e 10 continuam a ser violados de forma flagrante, e, por isso, fazemos questão de lembrar que “nas áreas de batalha, devem existir zonas demarcadas para onde os doentes e feridos possam ser transferidos e tratados”, “proteção especial contra ataques garantida aos hospitais civis marcados com a cruz vermelha” e que seja “permitida a passagem livre de medicamentos”.
O contrário disto tem acontecido demasiadas vezes, aos nossos olhos, às vezes em direto, e não podemos ficar sem dizer, nem fazer nada. A FNAM, parte de um sindicalismo humanista, repudia os acontecimentos, junta a sua voz aos muitos médicos que, por todo o mundo, têm denunciado a guerra e apelado ao cessar-fogo, e solidariza-se com os colegas que, mesmo transformados em alvos, continuam a fazer o seu trabalho em condições inimagináveis.
As ambulâncias, os hospitais, os médicos e os demais profissionais de saúde, porque estão ao serviço das populações civis, não podem ser considerados alvos sob nenhuma circunstância, pelo que todos os que assim não procedam, independentemente da sua bandeira, ideologia ou credo, devem ser censurados e travados.
Somamos a nossa voz a todos os que têm pedido às organizações internacionais e aos seus governos que abandonem a retórica que alimenta a beligerância, e juntamos a nossa força, mesmo que limitada, aos que lutam para que um mundo, sem o terror da guerra, seja possível.