Quando um barco foi em direção a Timor-Leste

Em março de 1992, um pequeno barco ousou desafiar o silêncio cúmplice das potências e a indiferença da comunidade internacional. O Lusitânia Expresso, navio fretado por cidadãos portugueses e estrangeiros, partiu de Lisboa com destino a Dili, Timor-Leste, num gesto simbólico de repúdio à ocupação indonésia após o massacre de Santa Cruz.
A bordo seguiam personalidades de relevo. Entre elas estava o médico Rui Marques, fundador do Movimento para a Independência de Timor-Leste (MEP) e coordenador da Missão Paz em Timor, que dedicara a sua vida cívica ao compromisso com a autodeterminação timorense. Com ele, viajavam ainda figuras como João Bosco Mota Amaral, então presidente da Assembleia da República, Almeida Santos, Medeiros Ferreira, representantes da Igreja, jornalistas e jovens ativistas que viam naquela viagem uma forma de transformar indignação em ação.
O barco nunca chegou a Dili. Interceptado por navios de guerra indonésios ao largo de Timor, foi obrigado a inverter a rota. Mas essa derrota física transformou-se em vitória política. As imagens correram o mundo: Portugal, pequena nação europeia, confrontava a Indonésia perante as câmaras, revelando a assimetria gritante entre cidadãos desarmados e fragatas militares. A operação deu visibilidade internacional à causa timorense, pressionou as Nações Unidas e reforçou a solidariedade entre a diáspora e Lisboa.
Os resultados não foram imediatos, mas foram palpáveis. O massacre de Santa Cruz deixou de ser apenas um episódio esquecido em Jacarta: passou a estar inscrito na consciência europeia e americana. A insistência portuguesa ganhou força diplomática, e a causa timorense consolidou-se no debate internacional até culminar no referendo de 1999, que conduziu à independência do novo Estado em 2002. Rui Marques continuou, entretanto, a liderar iniciativas de solidariedade, ajudando estudantes timorenses, participando na criação da Associação 12 de Novembro e, mais tarde, no Centro Juvenil Padre António Vieira em Díli.
Hoje, quando outro barco se dirige para Gaza, muitos recordam o precedente timorense. Também agora, o gesto não se mede pela robustez do casco, mas pelo valor simbólico de enfrentar uma injustiça. Se o Lusitânia Expresso mostrou que a persistência da solidariedade podia abalar o silêncio de um império, o navio que segue para Gaza inscreve-se na mesma tradição: a de que, por vezes, é no frágil movimento das embarcações civis que a História encontra o seu rumo.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor