O poeta que se tornou a imagem da marca de café

Há imagens que se tornam marcas e marcas que se tornam memória. A de Manuel Maria Barbosa du Bocage no pacote de açúcar do Café Nicola é uma dessas fusões improváveis em que a história, a literatura e o comércio se encontram à mesa. O poeta, que morreu em 1805, foi transformado em rosto publicitário mais de um século depois, e não por acaso.
O Café Nicola abriu portas em 1787, no Rossio, pelas mãos de Nicolau Breteiro, um comerciante de origem italiana que lhe deu o nome. Era uma casa de cafés e tertúlias, frequentada por oficiais, escritores e políticos. No final do século XVIII, o Nicola já era ponto de encontro da elite ilustrada de Lisboa, um espaço de conversa e de polémica, e também de sobrevivência para alguns. Entre esses, o poeta Bocage.
Bocage, natural de Setúbal, viveu entre a glória e a ruína. Soldado, funcionário público, preso político, amante das letras e da sátira, teve uma vida irregular e inquieta. Em Lisboa, depois de regressar de Goa, caiu em desgraça e passou por tempos difíceis. É então que, segundo a tradição, o dono do Nicola, José Pedro da Silva, o acolhe e o ajuda. O poeta frequentava o café, declamava versos e fazia da sua verve uma moeda de troca. O Nicola tornava-se assim mais do que um café: era um refúgio e uma plateia.
A lenda fixou-se. Bocage e o Nicola ficaram ligados pela memória oral e pelas crónicas da cidade. Quando, já no século XX, o café foi reconstruído em estilo Art Déco, em 1935, a direcção quis perpetuar esse vínculo. Colocou uma estátua de Bocage à entrada e usou a sua imagem em postais e materiais gráficos. Décadas depois, quando a marca Nicola se afirmou no mercado nacional e começou a lançar linhas próprias de café e de merchandising, o rosto do poeta tornou-se selo e assinatura. O “Lote Bocage”, ainda hoje à venda, prolonga essa ligação entre o café e a literatura.
A associação é mais do que decorativa. Bocage representava a Lisboa faladora, crítica e boémia, a Lisboa que discutia política e poesia entre o fumo e a cafeína. Ao transformar o poeta em símbolo, o Nicola reivindica uma herança cultural: a do café como espaço de encontro e de pensamento. É também uma estratégia de identidade nacional, associando o consumo quotidiano a uma figura de génio popular.
A história tem, contudo, uma ponta de ironia. O mesmo poeta que desafiou as convenções e a moral do seu tempo, o mesmo que viveu quase sempre sem dinheiro e sem estatuto, acabou transformado em imagem comercial. Mas talvez isso lhe agradasse. Bocage não era homem de pedestal, era homem de mesa. O seu humor e o seu sarcasmo cabiam bem no ambiente de café, onde a conversa era arte e o exagero, regra.
Há um pequeno episódio que resume este espírito. Certa vez, alguém lhe teria perguntado:
Quem és? Donde vens? Para onde vais?
Ao que Bocage respondeu, com o tom que lhe era próprio:
Sou o poeta Bocage, venho do Nicola e vou para outro mundo, se disparares com essa pistola.
É uma resposta à medida do seu génio: insolente, rápida e teatral. O episódio, verdadeiro ou não, ilustra bem o lugar simbólico que Bocage passou a ocupar, o poeta do povo, que fala de igual para igual, que responde com humor às ameaças e que transforma o quotidiano em literatura.
Hoje, quando o seu rosto surge no pacote de açúcar do Nicola, não se trata apenas de publicidade. É um gesto de continuidade histórica. O café que o acolheu mantém viva a sua imagem; o consumidor, sem dar por isso, participa num ritual que tem mais de dois séculos. Entre o verso e a chávena, Bocage continua presente, a rir-se talvez da ironia de ter encontrado na marca de um café o caminho mais duradouro para a imortalidade.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor


