O carisma franciscano na vida de Santo António

Escrevo movido por uma admiração íntima, aquela que nasce do encontro entre a história e a devoção, para pensar como o carisma franciscano moldou, orientou e iluminou a vida de Santo António de Lisboa. A questão não se limita a episódios maravilhosos. Revela sinais, argumentos e gestos que exprimem uma espiritualidade profundamente franciscana: amor à pobreza, proximidade aos pobres, pregação itinerante, fraternidade com a criação e coragem de testemunhar até ao martírio.
Santo António, nascido Fernando em Lisboa, não escolheu o hábito franciscano por acaso. A sua vocação foi precipitada pela visão dos primeiros mártires franciscanos de Marrocos, cujos corpos passaram pela Península e se tornaram exemplo para muitos jovens religiosos. Esse desejo de ser testemunha até ao sangue levou-o a pedir admissão na Ordem e a deixar a sua confortável estabilidade intelectual por uma vida de itinerância e risco.
O carisma franciscano manifesta-se de forma clara na opção pela pobreza como critério de autenticidade evangélica. Em António essa escolha aparece na abnegação pessoal e na pedagogia do sinal. A sua pregação era pobre em aparato e rica em convicção, destinada a tocar corações em vez de maravilhar plateias. Quando encontrou resistência entre hereges ou céticos, recorreu ao gesto profético. Calou as palavras para que a natureza testemunhasse. O célebre sermão aos peixes em Rimini tornou-se metáfora e facto. Diante da recusa humana, ele dirigiu-se aos peixes do mar, que se aproximaram e pareceram ouvir reverentes aquilo que os homens não quiseram escutar. O episódio sublinha a universalidade da criação como auditora da Palavra e a eficácia do sinal quando a razão humana se fecha.
Os milagres ligados a animais, como a mula que se ajoelhou diante da Eucaristia, não se reduzem a histórias piedosas. Revelam o sentido profundo do carisma franciscano. Criaturas de Deus, irmãos na criação, manifestam por gestos a verdade que os homens não querem aceitar. A tradição do animal ajoelhado perante o Santíssimo exprime a soberania do mistério e a humildade necessária diante dele.
Outros traços do carisma franciscano aparecem na paixão de António pela pregação popular. A tradição apresenta-o como mestre eloquente e catequista dos simples, fiel à escolha franciscana por uma igreja próxima do povo. Muitas narrações de curas, intercessões infantis ou restituições de objetos roubados não se compreendem apenas como prodígios isolados. Funcionam como sinais de uma missão centrada na restauração da comunhão. Sacramentos restituídos, lares pacificados, comunidades reconciliadas. Em todas essas narrativas percebe-se a mesma lógica: o poder do Evangelho pregado com pobreza, humildade e caridade.
A dimensão comunitária ocupa igualmente lugar essencial. António viveu e atuou como irmão, não como solista da santidade. A fraternidade evangélica definiu a sua vida e sustentou a sua missão. A canonização rápida e a difusão das histórias da sua vida mostram uma comunidade que reconheceu nos seus gestos e palavras uma autenticidade em harmonia com o ideal de Francisco de Assis.
Ler Santo António à luz do carisma franciscano significa perceber que milagres e parábolas em ato, com peixes, animais ou crianças, não foram meros adornos hagiográficos. Representaram pedagogia prática para uma Igreja e uma sociedade carentes de conversão. Numa época em que a linguagem religiosa corre risco de se tornar técnica ou mercantil, o exemplo de António propõe menos aparato e mais testemunho, menos retórica de poder e mais amizade com os pobres, menos discurso fechado e mais abertura aos sinais de Deus na criação.
A imagem que fica é clara. Se a Palavra encontrou receptividade nos peixes e na mula, a verdadeira conversão não depende de argumentos retóricos. Depende de uma vida que, pela pobreza e coerência, torna visível a presença de Deus. Na coerência franciscana reside o maior encanto e o maior apostolado de Santo António.
São Francisco permanece como raiz e inspiração dessa força espiritual. A sua visão da fraternidade universal e do amor absoluto a Cristo abriu caminhos que António percorreu com fidelidade e brilho. O papel dos franciscanos, ontem como hoje, continua a ser decisivo na construção de uma Igreja humilde, próxima, alegre e profundamente comprometida com os pobres e com a paz.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor