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Enxaqueca em Portugal: os paradoxos do retrato possível

Enxaqueca em Portugal: os paradoxos do retrato possível

Filipe Palavra

Médico Neurologista na Unidade Local de Saúde de Coimbra

Presidente da Sociedade Portuguesa de Cefaleias

A enxaqueca é, há muito, uma das doenças neurológicas mais prevalentes e incapacitantes em Portugal. Estima-se que afete cerca de 15% da população, com maior incidência no sexo feminino, sobretudo em idade ativa. Apesar destes números expressivos, continua a ser subdiagnosticada e frequentemente banalizada, tanto pela sociedade em geral como, em alguns casos, pelo próprio sistema de saúde.

Quem sofre de enxaqueca não enfrenta apenas uma dor de cabeça intensa. Vive episódios recorrentes de dor pulsátil, muitas vezes acompanhados de náuseas, vómitos, fotofobia ou fonofobia. Estes sintomas têm impacto direto na qualidade de vida, na produtividade laboral e no bem-estar familiar e social. Em termos de anos de vida ajustados por incapacidade, a enxaqueca figura entre as principais causas de sofrimento crónico em idade ativa.

Em Portugal, as dificuldades na gestão da doença começam logo no reconhecimento do problema. Muitos doentes recorrem a automedicação ou a consultas ocasionais, o que inviabiliza um diagnóstico estruturado. O tempo médio até se chegar a uma avaliação especializada pode ser longo, contribuindo para a cronificação da doença. A formação em cefaleias ainda não é suficientemente transversal na prática clínica geral, o que perpetua atrasos na referenciação, quando necessária.

Outro aspeto crítico é o subtratamento. Embora tenhamos hoje disponíveis terapêuticas inovadoras – como os anticorpos monoclonais dirigidos ao CGRP (peptídeo relacionado com o gene da calcitonina) e os antagonistas orais do seu recetor (gepants) –, o seu acesso continua desigual, condicionado por critérios de comparticipação e limitações logísticas. A realidade é que a maioria dos doentes em Portugal ainda se apoia essencialmente em fármacos clássicos, ficando privados de soluções que poderiam contribuir para transformar a sua vida quotidiana.

O impacto económico da enxaqueca no nosso país é também significativo. As faltas ao trabalho e à escola, a perda de produtividade e o recurso frequente a serviços de urgência representam custos diretos e indiretos elevados. Contudo, continua a faltar uma estratégia nacional consistente para a cefaleia, capaz de integrar prevenção, diagnóstico precoce e acesso equitativo a tratamentos. Importa, ainda, sublinhar o peso do estigma. Muitos doentes relatam sentir-se incompreendidos por colegas, familiares ou até profissionais de saúde. A perceção errada de que a enxaqueca é apenas “uma dor de cabeça” contribui para o isolamento e para o sofrimento silencioso de milhares de portugueses.

O retrato da enxaqueca em Portugal é, pois, paradoxal: uma doença altamente prevalente, com impacto individual e social profundo, para a qual existem avanços científicos relevantes, mas onde persistem barreiras de diagnóstico, tratamento e reconhecimento. O desafio que temos pela frente é assumir a enxaqueca como uma prioridade de saúde pública. Para isso, precisamos de três compromissos: reforçar a literacia em saúde, formando profissionais e sensibilizando a sociedade; garantir acesso equitativo às novas terapêuticas, independentemente da região ou condição socioeconómica da pessoa com o diagnóstico; e investir em investigação nacional que nos permita conhecer melhor o peso real da doença e avaliar a eficácia das intervenções.

Só assim conseguiremos transformar este retrato: de uma realidade marcada pela subvalorização para um futuro onde a enxaqueca é reconhecida, tratada de forma eficaz e encarada como a doença neurológica incapacitante que verdadeiramente é.

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