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Quando se ultrapassam os limites da razoabilidade

Quando se ultrapassam os limites da razoabilidade

Artigo de Artur de Jesus, publicado revista Nova Costa de Oiro em https://www.novacostadeoiro.com/

A tranquilidade e a paz que se desejam na vida social e quotidiana em países que se auto-intitulam de desenvolvidos, modernos e civilizados foi abalada pelos infelizes acontecimentos recentemente vividos do outro lado do Atlântico, os quais resultaram em diversos episódios trágicos e chocantes.

Entre as motivações dos protestos, entretanto ocorridos por toda a parte, gerou-se um ambiente de excessos. Contudo, importa enquadrar estes acontecimentos e reflectir, pois as situações específicas ocorridas em contextos específicos não devem ser generalizadas e, sobretudo, não se devem importar e reproduzir em contextos absolutamente desconexos.

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A especificidade dos Estados Unidos da América

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Acontece que nada do que temos visto acontecer nas cidades norte-americanas por estes dias é uma novidade e as raízes são muito profundas e traumáticas.

Depois do fim da Guerra Civil, ou da Secessão (1861-65), a partir da Década de 70 do Século XIX e até aos anos de 1964/65 os Estados Unidos da América ficaram marcados pela existência de uma segregação racial efectiva em vários territórios. A sociedade ficou dividida.

Esse período de tempo ficou conhecido por Jim Crow, uma figura burlesca que satirizava os Afro-Americanos, as suas características, formas de ser e de estar e que se tornou no símbolo de uma época intolerante.

Restaurantes, estádios, cafés, teatros, salas de cinema, lavandarias, balneários, piscinas, casas de banho, transportes públicos, salas de espera, fontanários, parques, jardins zoológicos, máquinas de bebidas, bombas de gasolina, terminais rodoviários, estações ferroviárias, zonas de piquenique, salas de jantar, escolas, igrejas, praias e outros espaços existiram de forma separada para brancos e negros.

Durante todo esse longo período de tempo os Afro-Americanos conheceram realidades quotidianas (nalguns territórios) como as de serem servidos em último lugar nas lojas, terem de ceder a passagem a brancos, entrarem pelas portas das traseiras em casas de brancos, etc.

Todo esse ambiente de intolerância e de marginalização levou a que, entre 1916 e 1970, cerca de 6,5 milhões de Afro-Americanos rumassem aos territórios do Norte e do Oeste dos Estados Unidos em busca de melhores condições de vida, distantes do sistema segregacionista que se evidenciou nos territórios do Sul.

Esse movimento ficou conhecido como a “Grande Migração”. Uma realidade que não deixa de constituir uma curiosa contradição com a imagem que se construiu dos Estados Unidos da América enquanto terra de promessa, de Liberdade e de concretização de sonhos. Para muitos o sonho permaneceu incumprido.

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A presente vaga Iconoclasta

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É pois este um dos contextos que subjaz às vagas de revolta actuais. Contudo, uma visão parcial da realidade é redutora, apenas conduz ao excesso e importar contextos que são exteriores à nossa realidade específica nacional é absolutamente incorrecto, pois não há comparação possível entre as realidades dos Estados Unidos e a portuguesa.

Vandalizar a memória de um homem que foi um dos maiores vultos da Cultura Portuguesa, um missionário, diplomata, defensor dos povos autóctones do Brasil e dos Judeus e que chegou mesmo a ser perseguido, como foi o Padre António Vieira (1608-1697), foi um acto totalmente desnecessário, tal como os que aconteceram na nossa cidade de Lagos no antigo edifício da Vedoria e na estátua do Infante D. Henrique.

Porém, neste contexto, a situação mais curiosa veio dos próprios Estados Unidos, onde surgiu a ideia de se retirarem do icónico Capitólio as estátuas de figuras da antiga Confederação, a pretexto da escravatura.

Aqui, porém, é precisa alguma cautela, a bem da verdade, pois dois dos grandes Pais Fundadores dos Estados Unidos e pilares da Democracia Americana – George Washington (1732-1799) e Thomas Jefferson (1743-1826) – foram proprietários de plantações (Mount Vernon e Monticello, respectivamente) e senhores de muitos escravos, sendo bem ciosos das suas prerrogativas.

Dados recentes mostram, por exemplo, que Washington deu caça intensa a uma sua escrava que fugiu (Ona Judge). Por outro lado, Jefferson manteve uma relação com a sua escrava Sally Hemings, contrariando as suas próprias ideias em relação à miscigenação (que receava).

Se lermos, ainda, atentamente a sua obra Notes on the State of Virginia, redigida por Jefferson em 1781-82, encontraremos uma visão negativa dos negros, evidenciada em vários momentos, chegando mesmo a defender num deles: “Adianto, portanto, apenas como suspeita, que os negros, sejam eles originalmente uma raça distinta, ou diferenciada pelo tempo e pelas circunstâncias, são inferiores aos brancos nas capacidades do corpo e da mente”.

Chegou mesmo a advogar que a sua emancipação não se fizesse de forma imediata. Ideias hoje absolutamente repudiadas. Assim, perante a actual iconoclastia, o que fazer em relação a isso?

Muda-se o nome da capital norte-americana, uma vez que recorda um homem que também foi senhor de escravos? Desmantela-se, também, o próprio Capitólio, uma vez que também houve mão-de-obra escrava na sua construção?

Haja sensatez! Falamos de homens, com virtudes e limitações, homens do seu tempo, num tempo e num espaço próprio (que foi o seu e não o nosso), com as suas idiossincrasias e contradições comuns a qualquer homem (incluindo nós mesmos). Pense-se e repense-se a realidade com moderação.

Não se pretende aqui julgar. Pretende-se apenas lembrar e reflectir na importância de mantermos uma atitude serena, ponderada e prudente na análise das realidades, considerando os seus contextos.

O Mundo não é muito maior que uma pequena aldeia, onde vivem várias famílias desavindas e que, afinal, não passam de uma mesma família. Não nos esqueçamos que temos raízes comuns que vêm da África, do Oriente Mediterrânico e do Médio Oriente (aliás, quantos de nós não teremos raízes africanas?).

Não valerá mais a pena procurarmos tudo aquilo que nos une, em vez de buscarmos o que nos separa? Saibamos, pois, respeitar o nosso Passado, aprendendo com ele, vivendo em Paz e em Respeito uns para com os outros.

Só assim a Humanidade e o Mundo poderão alcançar um equilíbrio e uma harmonia desejadas desde tempos imemoriais e cumprir-se o sonho de uma Felicidade global que há muito se almeja.

Dedicam-se estas reflexões à memória de George Perry Floyd Jr., morto de forma agonizante, atroz e desnecessária, em 25 de Maio de 2020.

Esteja a sua alma em paz.

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Artur Vieira de Jesus,

Licenciado em História

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