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Malnutrição: Um problema silencioso que afeta milhares de portugueses

Malnutrição: Um problema silencioso que afeta milhares de portugueses

Dr. Ricardo Marinho – Coordenador do Núcleo de Estudos de Nutrição Clínica da SPMI

A malnutrição associada à doença é um problema de saúde pública grave que afeta milhares de portugueses diariamente, mas que permanece amplamente subvalorizado e subdiagnosticado no nosso sistema de saúde. Contrariamente ao que muitos pensam, a malnutrição não é apenas uma questão de falta de alimentos, mas sim uma condição clínica complexa que resulta da interação entre doença aguda ou crónica e uma nutrição inadequada.

O que é a Malnutrição

A malnutrição, caracteriza-se por um desequilíbrio entre as necessidades nutricionais do organismo e a ingestão ou absorção de nutrientes. No contexto hospitalar, esta condição manifesta-se frequentemente como malnutrição associada à doença, onde o processo patológico aumenta as necessidades nutricionais, que associado a um processo inflamatório, compromete a capacidade do doente se alimentar adequadamente.

A malnutrição não afeta apenas o peso corporal. As suas manifestações incluem perda de massa muscular (sarcopenia), diminuição da força física, compromisso do sistema imunitário, cicatrização mais lenta de feridas, e deterioração da função cognitiva. Estes sinais são frequentemente interpretados erroneamente como consequências normais do envelhecimento ou da doença subjacente, quando na realidade representam uma condição tratável e reversível.

Incidência em Portugal

Em Portugal, a prevalência de risco nutricional em adultos internados nos hospitais atinge cerca de 28% a 42%, sendo que pode ser ainda mais elevado em especialidades de risco, com as enfermarias de Medicina Interna (chegando a 51%), com fatores como admissões prévias e comorbilidades múltiplas a aumentarem o risco.

Estes valores são particularmente preocupantes quando consideramos que Portugal possui uma das populações mais envelhecidas da Europa. A população idosa, especialmente aqueles com fragilidade ou múltiplas doenças crónicas, constitui o grupo de maior risco para o desenvolvimento de malnutrição. Estudos nacionais demonstram que entre idosos institucionalizados, 63,6% apresentam sinais de malnutrição ou risco de malnutrição

Estima-se que existam cerca de 115 mil doentes em risco ou malnutridos que necessitam de suporte nutricional, com dois em cada quatro adultos hospitalizados afetados – o dobro da média europeia.

Consequências Clínicas e Económicas

As consequências da malnutrição não tratada são devastadoras tanto para os doentes como para o sistema de saúde. Dados do estudo realizado na ULS Santo António demonstram que os doentes com risco nutricional que não receberam suplementação nutricional apresentaram um risco de morte intra-hospitalar 3 vezes superior comparativamente aos doentes sem risco nutricional.

As consequências não se limitam ao período de internamento. A malnutrição aumenta significativamente o risco de quedas e fraturas devido à perda de massa e força muscular, promove maior suscetibilidade a infeções com maior duração e gravidade devido ao compromisso do sistema imunitário, contribui para o declínio cognitivo e perda de autonomia, aumenta as taxas de reinternamento hospitalar, e prolonga significativamente o tempo de recuperação.

Do ponto de vista económico, o impacto é igualmente substancial. Estima-se que os custos associados à malnutrição para o Serviço Nacional de Saúde ultrapassem os 225 milhões de euros anuais. Os doentes com risco nutricional apresentam custos hospitalares 79% superiores, sendo que os custos de hospitalização diária representam o principal contributo para este aumento. Estes custos adicionais decorrem não apenas do tratamento direto da malnutrição, mas principalmente do aumento do tempo de internamento, da maior incidência de complicações, da necessidade de mais medicamentos (especialmente antibacterianos), e das readmissões hospitalares frequentes.

A Importância da Intervenção Nutricional

A boa notícia é que a malnutrição é uma condição reversível quando identificada e tratada adequadamente. O estudo da ULS Santo António demonstrou de forma inequívoca que a suplementação nutricional adequada neutralizou eficazmente o risco elevado de morte associado à malnutrição. Os doentes com risco nutricional que receberam suplementação apresentaram taxas de mortalidade comparáveis aos doentes sem risco nutricional, evidenciando o enorme potencial da intervenção nutricional.

A evidência económica internacional e as orientações de organização da nutrição hospitalar reforçam que estratégias sistemáticas de rastreio e suporte nutricional são custo‑efetivas e prioritárias para sistemas de saúde.

Estudos demonstram que a suplementação nutricional oral precoce melhora o risco de mortalidade, sendo que basta tratar 37 pessoas para evitar uma morte. Contudo dado a dificuldade que existe em os doentes arranjarem uma cama hospitalar, sendo que em muitos hospitais podem passar vários dias internados no serviço de urgência, essa janela de oportunidade perde-se, agravando ainda mais o estado nutricional.

A Baixa Codificação do Diagnóstico Hospitalar

Apesar da elevada prevalência, menos de 10% dos casos de risco nutricional são codificados com ICD-10 nas altas hospitalares, contrastando com os 28-42% detetados por rastreio sistemático. Esta subcodificação reflete a falta de implementação efetiva do rastreio obrigatório desde 2019, subestimando o problema e limitando a alocação de recursos e políticas públicas.

Estudos internacionais confirmam que esta não é uma realidade exclusivamente portuguesa, demonstrando que a codificação de malnutrição baseada apenas na impressão clínica dos médicos apresenta concordância muito baixa com ferramentas de rastreio validadas.

Rastreio e Avaliação Nutricional

Desde 2019, o rastreio da malnutrição está implementado eletronicamente a nível hospitalar em Portugal, através de ferramentas validadas como o Nutritional Risk Screening 2002 (NRS-2002). Este instrumento permite identificar precocemente os doentes em risco nutricional nas primeiras 48 horas de internamento, possibilitando uma intervenção atempada.

Contudo, urge a implementação efetiva do rastreio nutricional nos Cuidados de Saúde Primários, conforme já legislado pelo Despacho n.º 9984/2023. A deteção precoce da malnutrição no ambulatório permitiria prevenir complicações e evitar internamentos hospitalares, representando uma estratégia mais custo-efetiva.

O Problema da Acessibilidade

Um dos maiores obstáculos ao tratamento adequado da malnutrição em Portugal é a falta de acessibilidade equitativa à terapêutica nutricional. As diretrizes europeias da Sociedade Europeia de Nutrição Clínica e Metabolismo (ESPEN) recomendam claramente que o suporte nutricional iniciado durante o internamento hospitalar deve ser continuado durante pelo menos um mês após a alta, no contexto de ambulatório, para garantir a recuperação nutricional completa e prevenir o reinternamento.

Em Portugal, e ao contrário da maioria dos restantes países europeus, a acessibilidade aos suplementos nutricionais orais - primeira linha terapêutica efetiva e não invasiva para reverter a malnutrição - só existe gratuitamente a nível hospitalar.

No ambulatório e domicílio, os suplementos nutricionais orais são produtos de venda livre sem qualquer comparticipação associada, o que promove uma grave iniquidade no acesso à terapêutica nutricional. Esta situação é particularmente dramática para idosos e pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconómica, que enfrentam dificuldades para manter uma nutrição adequada após a alta hospitalar devido a limitações financeiras.

Esta descontinuidade entre o ambiente hospitalar e o ambulatório cria uma barreira crítica à recuperação nutricional dos doentes. Quando um doente recebe alta hospitalar após ter iniciado suplementação nutricional durante o internamento, deveria manter essa terapêutica por pelo menos um mês para consolidar os ganhos obtidos. Contudo, muitos doentes, especialmente idosos e pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconómica, não conseguem suportar os custos elevados destes produtos, interrompendo precocemente o tratamento e comprometendo a sua recuperação.

Recentemente, no dia 4 de março de 2025, o Ministério da Saúde criou o regime excecional de comparticipação para a nutrição entérica (Portaria n.º 82/2025/1), sendo um primeiro passo importante, embora chegado a Novembro, esta medida ainda não foi aplicada na prática. Além disso, a exclusão numa primeira fase dos suplementos nutricionais orais no regime de comparticipação representa oportunidade desperdiçada, uma vez que são a primeira linha terapêutica. A sua não inclusão apenas irá prolongar e agravar estados de malnutrição, não permitindo a otimização dos cuidados nutricionais.

O Caminho a Seguir

A luta contra a malnutrição exige uma ação concertada e multidisciplinar. São necessárias várias medidas urgentes: implementação efetiva do rastreio nutricional sistemático em todos os níveis de cuidados de saúde, formação adequada dos profissionais de saúde para reconhecimento e codificação da malnutrição, garantia de acesso equitativo à terapêutica nutricional através da comparticipação de suplementos nutricionais orais, desenvolvimento de equipas multidisciplinares de nutrição clínica em todos os hospitais, e sensibilização da população para os sinais de alerta da malnutrição.

A 7ª edição da Semana da Sensibilização para a Malnutrição, que decorrerá de 10 a 16 de novembro de 2025, com o mote "Acessibilidade equitativa à nutrição clínica", representa um momento crucial para unir esforços em torno destas questões fundamentais. Esta iniciativa, promovida pela Associação Portuguesa de Nutrição Entérica e Parentérica (APNEP) e integrada na campanha internacional ONCA (Optimal Nutritional Care for All), pretende consciencializar profissionais de saúde, doentes, cuidadores e decisores políticos para a importância da malnutrição e das suas implicações.

A malnutrição não é uma consequência inevitável da doença ou do envelhecimento - é uma condição clínica tratável e reversível que merece a nossa atenção urgente. Ao investir na nutrição dos grupos mais vulneráveis, estaremos não só a promover a sua saúde e bem-estar, mas também a reduzir custos associados a complicações e reinternamento, criando uma sociedade mais justa e saudável.

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