O Centro Cultural de Lagos recebeu, no passado fim-de-semana de 20 e 21 de Agosto, o espectáculo #LIMOEIRO 55, uma criação do lacobrigense Daniel Matos e dinamizada pela associação cultural CAMA, da qual é co-fundador.
Texto por Marta Ferreira
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Daniel Matos, 25 anos, nascido e criado em Lagos. É coreógrafo, bailarino e performer freelancer, bem como director artístico da associação cultural CAMA, fundada oficialmente em 2017 por si e pela conterrânea Joana Flor Duarte, com vista à criação e difusão de obras artísticas contemporâneas ligadas às artes performativas.
Depois de uma jornada pelo país e pela Europa, o jovem tornou finalmente ao Sul para apresentar #LIMOEIRO 55, uma performance «para dois corpos, dois cubos de gelo e dois raios de solidão», conforme apresentada aos meios de comunicação numa primeira instância (ver notícia) e que marcou decerto a plateia devido à sua irreverência conceitual, mas também pela simplicidade nua e crua (literalmente) incorporada pelos intérpetes Hugo Cabral Mendes e Lia Vohlgemuth.
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Nascimento, processo criativo e simbologia
Tudo começou em 2017, numa residência artística do festival vimaranense "NOC NOC", sendo #LIMOEIRO 55 um excerto da peça inicialmente apresentada, de seu título "Pólos".
Daniel falou-nos um pouco dos elementos por detrás da primeira cenografia utilizada, aquando da estreia em Guimarães: «Trabalhámos muito com gelo, começámos a pesquisar sobre o que é este "lugar do vazio" e a perceber que os corpos [dos intérpretes] substituem completamente tudo aquilo de que estavamos à procura nesses cubos de gelo, nesses lugares de cenografia, objectos, etc. Acho que os corpos deles veiculam tudo isso, aliás, eles são tudo isso: agentes de acção e observação», elaborou, relativamente à dualidade contida na obra.
#LIMOEIRO 55 tem precisamente origem no fruto da mesma árvore. A peça inicial envolvia «muitos limões», segundo lembrou, daí o nome atribuído a princípio – "Tens a cor do fruto do limoeiro".
«Sabia que queria trabalhar com limões. Estavam pelo palco, no meio do público... Foi uma experimentação», revelou. E continuou, com respeito à simbologia do número 55: «É um número ímpar. Se eu imaginar um limoeiro, há sempre o que fica sozinho; é nesse lugar que a peça está. Representa o não ter medo de ficar só, disponibilizar o corpo sozinho, seguir em frente. Em 54 limões existe sempre mais um», brincou. Curiosamente, o responsável pela iluminação do cenário acabou por montar 55 projectores, de forma não propositada, esquema que desde aí escolheram manter.
O cenário escolhido para Lagos envolvia apenas uma rampa estilo half pipe, de cor azul, que por entre a luz acaba por contrastar com o tom metalizado das vestes dos bailarinos: «É um espaço vazio, em que estão só os dois, mas ao mesmo tempo um espaço partilhado com o público. A sala [do Centro Cultural] é pequena, o que torna tudo mais intimista. A ideia era essa, até porque a peça tem muita energia vectorial, para conseguir dialogar com o espectador», explicou o artista, para o qual foi «interessante perceber como as ideias que estavam guardadas naquele local de residência e processo em 2017 fazem sentido ainda hoje».
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«Sempre pensei que não queria dançar, mas sim criar»
Daniel não se define; pelo contrário, considera-se ainda «muito à procura das coisas», crente no potencial do cruzamento interdisciplinar: «Não procuro sedimentar-me. Gosto muito de trabalhar com o cruzamento artístico, apesar de ser formado em dança», expressou. Licenciado na Escola Superior de Dança de Lisboa e desde sempre ligado ao Teatro Experimental de Lagos (TEL), nos trabalhos que realiza costuma também ir beber inspiração às artes visuais, área que escolheu estudar no Secundário
Mas foi em Lisboa onde desbravou novos caminhos, trabalhando desde cedo e participando de inúmeros workshops e audições. Deve muito da sua projecção neste mundo a Ana Borralho e João Galante, fundadores da associação cultural casaBranca, sediada em Lagos: «Sempre pensei que não queria dançar, mas sim criar, pôr as minhas ideias em prática», realçou. Para si, o mundo do espectáculo beneficia sempre de uma «troca bastante grande entre todos».
Tinha 12 anos quando realizou a sua primeira peça. Como artista freelancer, várias foram já as experiências que teve oportunidade de viver, nomeadamente ao lado de nomes como Angélica Liddell, Amélia Bentes e Romeo Castellucci. Participou de tours europeias e, inclusive, montou algumas peças da dupla casaBranca, ao mesmo tempo que fazia circular em Portugal as próprias criações autorais: «Nessa altura estava a trabalhar muito para os outros, com companhias e trabalhos diferentes, de linguagens específicas, (...) e fui reunindo uma bagagem (...) para perceber com o que me identificava», recordou.
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Do TEL para a CAMA: O salto
Desde cedo que o "bichinho" das artes se fazia sentir, mas foi ao trabalhar com o TEL, onde conheceu Joana, que se deu "o salto" para o associativismo: «A Joana estava a produzir uma peça, como parte de um estágio, e quisemos desde logo trabalhar em conjunto», adiantou. A partir daí, decidiram procurar criar uma estrutura com identidade própria, que lhes permitisse produzir projectos mais seus. Hoje trabalham em sinergia: «Arrumamos os dois a mesma casa (risos)».
Mais tarde, em 2019, fundam oficialmente a CAMA, que apesar de contar com dois lacobrigenses na sua fundação, acabou por encontrar na capital o seu principal estímulo: «Vir a Lagos torna-se muito difícil por n questões. É complexo, é preciso formar públicos. Não podemos ter medo de trazer coisas diferentes, há que ser feitas propostas para perceber que existem outras coisas além do comercial», afirmou. Na sua opinião, descentralizar a cultura é fundamental para melhor difundir a arte, quebrando com a ideia de que a cultura se manifesta apenas nas metrópoles. «Lagos é um lugar cultural com bastante potencial», remata.
À data, o percurso trilhado com a CAMA «está a ser muito enriquecedor». A associação tem crescido a olhos vistos, segundo partilha, com um boom considerável apenas no espaço de um ano. O núcleo propõe-se também a apoiar artistas que procurem «uma porta aberta» para receber os seus projectos: «Acolhemos recentemente a peça "Aurora Negra", que vai estar em Lagos em Novembro», deslindou. "Aurora Negra" é estrelada por três afrodescendentes que se reunem em palco – algo que não acontecia no Teatro Nacional Dona Maria II há 180 anos. «É muito bonito perceber que temos projectos incríveis como este dentro da estrutura», admitiu.
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«Já me deixa super feliz se alguém sair daqui a odiar isto [o espectáculo]. (...) Ao menos sei que mexeu com alguma coisa»
«Sempre fiz questão de que tudo o que eu fizesse viesse a Lagos. Não é devolver nada, mas foi aqui que eu comecei a trabalhar e quero mostrar que é possível fazer coisas e acreditar no que se quer fazer», desabafou.
O artista recordou os tempos em que observava com atenção os professores e performers que o rodeavam, mesmo apesar de algumas dificuldades e «questões sociais» mais ligadas à cidade. "Como é apresentar algo que é tao teu no meio que te viu crescer?", questionámos. «Sinto pressão, mas a partir do momento em que apresento a peça ela fica nas mãos do público e as pessoas digerem-na como quiserem», respondeu.
«O meu trabalho roça muito num lugar político, mas um lugar político do afecto. É muito emocional, cru, é aquilo que eu sinto e que acho que os outros também sentem; é sobre como é que encontramos este limbo, especialmente nesta peça. É algo mesmo intimo, e conseguimos encontrar entre os três [Hugo, Lia e Daniel] um lugar muito bonito», continuou por explicar.
«Já me deixa super feliz se alguém sair daqui a odiar isto. Quero que as pessoas sintam coisas, então, que odeiem, que seja horrível. Ao menos sei que mexeu com alguma coisa. Já vi espectáculos dos quais não percebi nada e que adorei. Tenho consciência de que isto é uma proposta e não está feito para que se goste ou não. Se adorarem, tudo bem, se não adorarem, tudo bem também. Acho que é difícil [a peça] ter um lugar de indiferença. É um trabalho muito honesto e só quero que sejam também honestos a recebê-lo», vincou.
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«É preciso muita coragem para fazer este tipo de trabalho. (...) [O Hugo e a Lia] estão a dar o corpo ao manifesto»
Do ponto de vista físico, Daniel classifica o trabalho dos intérpretes de #LIMOEIRO 55 como «muito duro» não só devido à exaustão provocada pelos repetitivos movimentos em palco, mas também porque o próprio psicológico acaba por sucumbir a esse mesmo esforço exacerbado. Além disso, a nudez explícita – que impressionou muitos de entre a plateia – acaba por colocá-los numa posição mais vulnerável: «É um mergulho muito grande neste lado físico e emocional deles; é um trabalho muito duro quer física, quer emocionalmente. O Hugo e a Lia são incriveis e muito generosos», referiu, grato.
E continuou: «Das coisas mais importantes que aprendi no meu trabalho e sobre a qual tenho de ficar agradecido, é que tenho colaborado com pessoas muito generosas. Não é qualquer intérprete que faria isto, é preciso muita coragem e, ao mesmo tempo, ser bastante humilde. Estão a dar o corpo ao manifesto por uma coisa que é minha, então nao posso fazer nada sem ser confiar neles e agradecer-lhes».
Nas palavras de Daniel, este «foi um trabalho conjunto» que pressupõe «uma troca» de intimidade: «Não lhes peço para serem nada além deles próprios. No fundo, acho que todos nós temos milhares de outros "nós" cá dentro, e neste espectáculo eles propõem-se precisamente a encontrar esses milhares sendo que não estão protegidos por uma personagem ou papel, não há uma perspectiva de futuro nem de passado. (...) É estar à procura de uma coisa que nunca encontras», esclareceu.
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Impacto da pandemia na cultura e perspectivas de futuro
Daniel reconhece-se como privilegiado por ter tido trabalho durante a pandemia, «algo raro para os artistas», de acordo com o próprio. Fora isso, aproveitou os confinamentos para tomar conta de assuntos respeitantes à associação.
No caso de #LIMOEIRO 55, por serem apenas três, o perigo de contraír o vírus era reduzido, usufruindo de um estúdio em Lisboa onde tinham ensaios à porta fechada. Além disso, eram testados regularmente. Como a peça estreou em Junho, felizmente beneficiaram da restituição dos espectáculos. Ainda assim, tiveram de lidar com inevitáveis adiamentos e reagendamentos. «Nunca estivemos parados. A cultura é dos sítios mais seguros para estar», rematou.
Quanto ao futuro, este mantém-se imprevisível. Mas porque «a CAMA está a crescer», o coreógrafo revelou sentir-se contente e esperançoso: «Para já, não nos é possível ficar em Lagos, mas pelo menos passar mais tempo. Queremos estar mais presentes no sul. A nossa ideia é trabalhar este espaço cultural e social em paralelo com o Município e outras associações para potenciar a cidade em termos de programação».
Recorde-se que a CAMA tem a decorrer ateliers de criação e experimentação artística para a comunidade na Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe, em Vila do Bispo, uma iniciativa gratuita no âmbito do Programa DiVaM – Dinamização e Valorização dos Monumentos do Algarve (ver notícia).
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Galeria de imagens:
Fotografia principal + fotografias 5, 6, 7 e 8: Bailarinos Hugo e Lia.
Fotografias 1, 2, 3 e 4: Imagens promocionais do espectáculo.
Fotografia 9: Daniel e Joana, fundadores da CAMA.
Créditos fotográficos: Guilherme Gouveia.