Marta Ferreira
11 de Março de 2020 marca a data em que a pandemia de Covid-19 assolou Portugal, trazendo consigo medos, anseios e dificuldades acrescidas para um Serviço Nacional de Saúde (SNS) que se tornou sobrecarregado. Nesta edição, e porque a 12 de Maio se assinala o Dia Internacional do Enfermeiro, o nosso jornal impresso procurou reunir testemunhos de alguns profissionais da área da Saúde perante a chegada inusitada do coronavírus, dando voz a quem tem combatido este flagelo “de frente”.
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Ana Rita da Luz, 25 anos, Enfermeira de Cuidados Gerais no CHUA/Portimão: «O medo era real e esteve bem presente»
Ana Rita da Luz, 25 anos, natural e residente em Lagos. Licenciou-se na Escola Superior de Saúde da Universidade do Algarve, em Faro, estando agora colocada no serviço de Medicina de Lagos. À semelhança de Raquel Susana, estreou-se na área no CHUA, no serviço de Cirurgia 2A.
Apesar do desafio profissional, Ana Rita sente que a pandemia potenciou a sua aprendizagem enquanto pessoa: «Dei por mim no meio de uma guerra cujo inimigo era desconhecido, sem armas nem estratégias para o combater. Sendo enfermeira, tive de trabalhar em condições reajustadas diariamente, pois o que era certo num dia já era errado no outro. Ao início, senti que nao tínhamos conhecimento suficiente para o que seria necessário enfrentar», confessou.
A proibição de visitas, a extensão do horário para turnos de 12 horas - preferencialmente, com os mesmos enfermeiros por turno, de forma a diminuir as cadeias de transmissão - e as estritas regras de fardamento, monotorização de sintomas e higienização contribuiram muito para uma situação de mal-estar físico e mental na altura em que o país atingia o pico de casos diários: «Lembro-me, por exemplo, de ficar com feridas nas mãos de tanto que as desinfectava. (...) Chegámos a um limite que nunca esperei ver: falta de material para podermos trabalhar em segurança, falta de descanso pelas horas extraordinárias e negligência pelo estado mental dos enfermeiros que viveram tão de perto esta pandemia», contou.
Tendo vivido uma realidade idêntica a Raquel no serviço de Cirurgia, Ana Rita apontou o número excessivo de doentes internados versus capacidade de resposta como derradeiro abismo: «Fiquei assustada. Portugal não tem nem de perto, nem de longe, as condições necessárias para dar resposta aos cuidados precisos para um número tão elevado de doentes. De dia para dia morriam pessoas nos cuidados intensivos devido a este vírus... Viveu-se um ambiente muito pesado naquele hospital, sem vagas e por vezes sem conseguirmos chegar a todos os doentes».
Mas porque com o tempo também vem conhecimento, a “enfermeira Rita”, como é tratada, afirma ter sentido melhoras nas medidas: «De momento, considero que as práticas de higiene e controlo de infecção melhoraram de uma forma geral, mas principalmente nos hospitais. A vacinação veio dar um impulso bastante positivo para a segurança de todos os enfemeiros e contribuir para a segurança dos doentes», explicou.
Outro dos obstáculos que se abateu sobre Ana Rita foi o facto de ter estado isolada da família e amigos, sem saber quando voltaria a vê-los: «Tinha receio e sentia-me ansiosa. O medo era real e esteve bem presente. Saí de casa, onde vivia com a minha mãe, e mudei-me durante dois meses para um alojamento em Lagos que me foi disponibilizado na altura, para evitar contaminar aqueles que me eram próximos. Tomei esta decisão porque não sabia o que me esperava... Todos os dias corria riscos. Sinto que foi a decisão mais acertada na altura, mas também a mais difícil», desabafou.
Ansiedade, receio, frustração e tristeza: tal como Raquel Susana, Ana Rita sentira na pele os efeitos deste vírus até então desconhecido. «O aumento do número de casos, bem como o colapso dos hospitais, deixaram-me desmotivada muitas vezes», desvendou. Por forma a arranjar força e coragem para superar o cansaço, Ana Rita tentava comunicar como podia com os entes queridos, por mais que não fosse pela Internet: «Foi essencial sentir-me próxima da minha família e amigos. Até o espírito de entre-ajuda na minha equipa, que por vezes ficou abalado, conseguiu persistir sempre». Apesar de tudo, diz sentir-se «sortuda» comparativamente a outros colegas.
No que respeita à actuação do Governo, Ana Rita caracteriza-a como «branda e tardia» a certo ponto. Não obstante, reconhece os efeitos benéficos das decisões tomadas, embora ache que deveriam ter sido antecipadas algumas delas a fim de evitar o súbito aumento de casos em Novembro passado. No que respeita aos apoios fornecidos, por sua vez tão «importantes e necessários», considera insuficientes os que realmente contemplaram a área da Saúde.
Não tendo certezas de como irá avançar o processo de vacinação, Ana Rita prevê que o país fique perto de alcançar a imunidade de grupo pelo final do Verão, contando que para isso exista «um esforço conjunto de consciencialização e confiança na vacina» por parte da população, especialmente junto dos mais jovens.
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Raquel Susana, 23 anos, Enfermeira de Cuidados Gerais no CHUA/Portimã: «Houve falta de material nas instituições de saúde e, infelizmente, há muita gente a passar fome»
Raquel José Susana, 23 anos. Reside actualmente em Barão de São Miguel, no concelho de Vila do Bispo, e é Licenciada pela Escola Superior de Enfermagem São João de Deus, em Évora. Iniciou profissão no Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA) de Portimão, mais especificamente no Serviço de Cirurgia 2A. Com a drástica evolução da pandemia em 2020, acabou por ser transferida para o Serviço de Internamento Covid-19 B, estando agora a cumprir funções no Serviço de Medicina do Hospital de Lagos.
Trabalhava há menos de um ano na área quando se viu a braços com os efeitos deste “vírus invisível”, pelo que vê o período de pandemia como «uma guerra» a combater. Ciente do longo percurso que ainda está por trilhar, ainda assim deposita esperança nas medidas sanitárias, bem como no processo de vacinação.
Com jus ao seu departamento, desde logo realçou positivamente as normas implementadas na unidade em fase de arranque, nomeadamente a utilização de equipamento de protecção pelos profissionais e utentes, a suspensão de visitas e/ou reorganização das mesmas com horários intercalados com limite de uma visita por pessoa e a testagem de utentes (sendo que só um resultado negativo permite o seu internamento em serviços não-Covid).
Segundo Raquel, o desgaste mental foi mais notório ao início, pois sentia-se ansiosa: «Viver o dia-a-dia sem saber bem com o que estamos a lidar e sem poder ou sem saber como nos protegermos a nós e aos outros, principalmente aqueles de quem mais gostamos, fazia com que me sentisse assim», desabafou. Mais tarde, ainda trabalhando em regime de internamento de Cirurgia, os turnos de 12 horas levaram a que o cansaço se mostrasse também físico.
Embora as cirurgias tenham sido canceladas, o seu serviço continuou a receber utentes não-cirúrgicos, mais aqueles pertencentes aos serviços que, dado o momento, estavam ocupados com doentes Covid - tudo isto “debaixo” de uma máscara que nem sempre podia ser substituída por uma nova, como deveria.
Depois de saber que viria a operar no Serviço de Internamento Covid-19 B, Raquel recorda ter tido receio da equipa a integrar: «Até podemos ter o melhor trabalho de sempre. Se a equipa for má, se não funcionar, se não houver inter-ajuda e apoio, torna-se o pior trabalho do mundo. Felizmente, tive sorte de fazer parte de uma equipa extraordinária. Foi o que nos valeu durante esse período», contou.
A juntar ao desconforto causado pelo kit de protecção (bata, máscara P2, viseira, cógula, touca, perneiras e luvas), a frustração associada a outras questões, como o medo de ser infectada e/ou de poder infectar entes queridos, contribuiu para um agravamento da fadiga sentida. Além disso, o desleixo da sociedade perante as regras estabelecidas pelo Governo despertara em Raquel sentimentos de indignação e angústia enquanto assistia de perto ao internamento de novos utentes.
Raquel chegou a ter solicitações por parte de utentes para a simples realização de uma chamada de despedida para a família antes da derradeira “hora do adeus”, os quais eram negados devido à falta de telemóvel disponível para o efeito. Posto isto, o regresso ao seu serviço foi «um misto de emoções», entre as quais alívio, mas também tristeza: «Sofri, cresci e aprendi imenso», deslindou.
Quanto ao papel do Governo no combate à pandemia, a enfermeira não deixou de enaltecer a sua preponderância no que toca a «estabelecer regras, limites, educar e informar a população», bem como a «disponibilizar estruturas e meios de apoio». Reconhece que tanto a posição do Governo como a da Direcção-Geral da Saúde não são fáceis, por serem várias as áreas afectadas pela pandemia. «Considero que houve medidas bem tomadas. Outras, nem por isso. Mas o que mais deploro é a permissão de determinados eventos político-partidários», desferiu. Em matéria de apoios, Raquel classifica-os como «poucos», uma vez que «houve muita falta de material nas instituições de saúde e, infelizmente, há muita gente a passar fome neste momento».
No âmbito da vacinação, Raquel aponta como entrave a falta de enfermeiros e consequente sobrecarga dos profissionais: «São muitos os agendamentos por dia e o rácio enfermeiro/doente é reduzido, levando ao aumento do tempo de espera, maior risco de inter-corrências, entre outras consequências. Terá que haver uma maior organização dos serviços competentes do agendamento das vacinas», completou.
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David Santos, 32 anos, Enfermeiro de Cuidados Gerais no CHUA/Portimão: «Penso que o número diário de infecções e internamentos se vai manter estável ou até reduzido»
David Santos, 32 anos, natural de Portimão, residente em Lagos e Licenciado pela Escola Superior de Saúde Jean Piaget, em Silves. Trabalha actualmente no Hospital de Portimão, desde 2011, no serviço de Medicina Interna 3A.
Tendo por base a gestão geral das consequências da pandemia, o balanço em relação a 2020 é, a seu ver, positivo: «A minha entidade patronal sempre soube lidar com as adversidades causadas pela pandemia, nomeadamente, a nível de recursos humanos e a nível de recursos materiais», perspectivou. E ainda que tenha sido necessário deslocar vários profissionais de serviço para serviço e contratar, assegura que os cuidados prestados nunca foram colocados em causa. Além disso, a vacinação foi feita «de forma muito célere e eficaz», nas próprias palavras, sendo que rapidamente grande parte dos profissionais ficaram vacinados.
Por não ter trabalhado directamente com doentes Covid, o seu quotidiano profissional «não sofreu grandes alterações» em termos de cansaço. Para si, os maiores obstáculos revelaram-se, sobretudo, no quotidiano não-profissional, com o confinamento e a obrigatoriedade de estar em casa. No caso, David foi pai pela primeira vez há pouco mais de três anos, pelo que os anseios se manifestaram naturalmente acrescidos nesse sentido.
De um prisma global, considera que o governo fez «o que estava obrigado a fazer, declarando o confinamento obrigatório quando houve a necessidade de proteger o Sistema Nacional de Saúde». Quanto aos apoios disppensados, foi rápido em apontar que «ficaram muito aquém das expectativas, pois os profissionais que trabalharam directamente com doentes Covid não foram devidamente valorizados em termos financeiros». Adiante, acrescentou: «Todos nós trabalhamos “por amor à camisola”, em prol do doente; mas como é obvio, queremos que valorizem o nosso trabalho financeiramente. Falo não do meu caso em específico, mas sim relativamente aos meus colegas, que diariamente andam fardados com o equipamento de protecção individual por 12 horas, o que é muito condicionante para a qualidade dos cuidados prestados».
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Perspectivas de futuro e 'fake news'
E porque o Algarve é uma das zonas mais procuradas para “escapar” aos grandes centros, o CL questionou estes profissionais quanto à chegada do Verão: poderá a época alta vir a contribuir para um aumento dos casos na região?
Na óptica de Raquel, sim: «A chegada do Verão pode contribuir para um aumento dos casos na região por poder significar maior aglomeração de pessoas, seja nas ruas, praias, eventos, estabelecimentos, e devido ao bom tempo, convidativo para recebermos turistas, socializar, sair à rua e passear», referiu.
Ana Rita partilha da mesma opinião, prevendo que a “febre” do Verão possa de facto suscitar um aumento do número de casos - e sendo Lagos uma zona turística, ainda mais. Confia, ao mesmo tempo, que a vacinação já tenha avançado por essa altura e que os conceitos de higiene e diatanciamento social se mantenham nos hábitos quotidianos.
Já David mantém-se optimista, crente de que o tempo quente ajudará no combate à pandemia: «Penso que o número diário de infecções e de internamentos se vai manter estável ou até reduzido. O grande desafio será quando vier novamente o tempo frio», advertiu, com respeito às novas estirpes do vírus. Neste aspecto em concreto, a vacinação ainda é para si «uma incógnita», sendo que as vacinas «não conseguem cobrir todas as estirpes do vírus».
Por fim, inquirimos este grupo de enfermeiros a par das fake news, que por sua vez potenciam a descrença na Ciência, bem como a propaganda anti-vacinas e consequente emergência de grupos negacionistas, questões que têm vindo a complicar o trabalho desenvolvido pelo Governo e autoridades de saúde na mitigação do vírus.
«É sempre importante que seja transmitida a verdade daqueles que são detentores do conhecimento e exigir que assim seja», defendeu Raquel, sendo que «mais importante ainda é seguir as indicações recomendadas, tendo em conta o conhecimento disponível no momento e com base em fontes fidedignas».
Na opinião de Ana Rita, há que ser selectivo e saber que nem tudo o que se lê na Internet é verdade. A enfermeira admitiu, inclusive, ter tido já as suas dúvidas: «No início, eu própria era influenciada pelo medo e pelo desconhecido. Confesso que tive receio da vacina, mas sendo enfermeira e alguém que acredita na ciência, no bom senso e no avanço da Medicina, agora vejo a vacina como algo essencial e benéfico no combate à pandemia». Ao momento, Ana Rita aguarda levar a segunda dose da AstraZeneca: «Estou segura da minha decisão e espero que o resto da população também o faça», recomendou.
Para David, a existência de grupos negacionistas «é tão certa como haver o dia e a noite», na medida em que «cabe a cada um de nós, enquanto indivíduos com livre arbítrio, o dever de nos informarmos e tomar as nossas decisões com base na nossa consciência livre e tranquila».
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Fotografias
1 – Ana Rita da Luz.
2 – Raquel Susana.
3 – David Santos.
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In: Edição Impressa do Jornal Correio de Lagos nº367 · MAIO 2021