O CL publicou, na edição de Junho, um apontamento sobre o lançamento do livro “Canções são razões”, de Armindo Gaspar, ficando agendada uma grande reportagem para Julho. Assim, tivemos a honra de conversar com uma das lendas da música, que partilhou, com o Correio de Lagos histórias que marcam toda uma vida dedicada às artes, amizades, vivências e muito mais. (Edição 345 ·Jornal Correio de Lagos - JULHO 2019)
Quem é Armindo Gaspar? Armindo Gaspar nasceu a 4 de Dezembro de 1944, em Peniche, mas desde pequenino (com apenas 7 anos) já morava em Lagos. Frequentou a Escola Industrial e Comercial de Lagos e no Conservatório Regional de Faro, estudou Harmonia com o Professor Anatólio Falé. Durante 45 anos desenvolveu actividade profissional como músico de entretenimento em hotéis, bares, teatros, e casinos em Portugal e também no estrangeiro. Participou na formação de vários grupos musicais, alguns deles de música popular e tradicional portuguesa, tendo ainda uma breve incursão na música jazz.
Este conjunto de experiências, adicionado à influência da actividade intensa do seu pai, José Gaspar, no Folclore e no Teatro, esteve na génese das suas composições populares, dos seus contos e da sua versão da história do Rancho Folclórico do Clube de Futebol Marítimo. Com quase meio século a ouvir e compor música, é vasta a discografia de Armindo Gaspar. Conta com os discos “Relax”, “Gaveta aberta” - com introdução de nova tecnologia, “Fada”- dedicado a sua mulher e “Escorpião”, que foi para si o seu melhor disco e levou 4 anos a fazer. Fez também música para marchas populares, ranchos folclóricos, teatro, musicais, inclusive uma peça de teatro para crianças na Filarmónica com o ilustre Arnaldo. Teve direito a uma festa no Centro Cultural de Lagos, promovida pela autarquia, em homenagem à sua brilhante carreira e contributo cultural, nos 62 anos; um espectáculo grandioso e digno do nosso “operário da música”.
“Um baile no Marítimo no sábado à noite era um grande acontecimento. As pessoas trabalhavam uma semana inteira à espera desta festa”
Correio de Lagos – Iniciando a nossa reportagem precisamente pelo evento mais mediático que aconteceu recentemente, importa saber: como é que Armindo observou o lançamento do seu livro “Canções são razões”, que registou casa cheia?
Armindo Gaspar – Sou um indivíduo mais ou menos popular. Como tive a minha actividade sempre na música durante estes anos todos e as pessoas não têm conhecimento do início da minha vida musical, todos os clubes associativos e recreativos da cidade de Lagos, Portimão, Silves. Eu toquei por todo o lado. Eram bailaricos até ao sol nascer e eu toquei naquelas coisas todas. Amigos e pessoas que estiveram em todo o meu percurso musical.
CL – Como surgiu a ideia de escrever esta obra? Esperava tão robusta receptividade por parte da Câmara Municipal de Lagos e da Junta de Freguesia de São Gonçalo de Lagos?
AG – Eu tinha um espaço na Internet, um "blogue" de seu nome “Música, Figos e Medronho”. Ia fazendo muitas coisas: marchas, músicas, teatro... tinha um baú cheio de material, decidi compilar tudo e fiz um livro. Nunca ninguém tinha apresentado um livro de música na “mostra de livros” e esse foi o meu motivo. Não é muita coisa, mas fui fazendo. Também não queria fazer um livro de poemas, que eu não sou poeta, nem faço prosa, filosofia ou história. Depois do livro estar feito, fotocopiei tudo e levei à Câmara Municipal de Lagos, falei com a Neuza, que me encaminhou para o Presidente da Junta de Freguesia de São Gonçalo, Carlos Saúde e posteriormente tive uma reunião com a Presidente da Câmara Municipal de Lagos, Maria Joaquina Matos. Dada a importância histórica e conteúdos do livro, decidiram avançar com o projecto. O livro tem assuntos que estavam esquecidos, como as partituras originais dos ranchos, pelo que tem um grande interesse histórico.
CL-Qual a acção que o seu pai teve na música no Algarve, que histórias se recorda desse tempo e que influência isso teve no seu livro e na sua música?
AG- O meu pai fez o serviço militar em Lisboa. Namorava com a minha mãe e mudaram-se para Peniche. Fundou lá o Rancho folclórico e quando chegou a Lagos foi para o “Marítimo”. Convidaram um grupo para os ensaios, - aquilo era difícil, nem queiram saber como era! O meu pai começou então a ensaiar e foi introduzido elementos novos no Folclore Algarvio. Antigamente não se dançava o “vira” no Algarve, só em vilas e aldeias piscatórias nas zonas de Lisboa para cima. Fiz uma pesquisa e contactei com alguns membros do Rancho Folclórico: Manuel Aníbal, que era o acordeonista da segunda fornada, e dantes o António da Chã. O meu pai trouxe as músicas de Peniche e cantarolou-lhe aos ouvidos. Como ele já sabia música, pegou num papel e escreveu aquilo tudo. Reconstituí as melodias e textos, mas tinha o problema de saber quem eram os autores. Fui a Peniche, pois eu não me esqueço da minha terra, procurei saber de quem eram as músicas, mas não consegui, mas não desisto. Agora acendeu-se uma luz! Esteve a expor um pintor com 82 anos na Mostra de Livros, que conhecia toda a minha família. Quando voltar a Peniche vou procurá-lo.
CL – Este livro tem o condão de contar grande parte do seu percurso de vida. Diga-nos como foi.
AG- Acabei o curso na escola, fiz o ciclo e disse ao meu pai que não queria mais escola. Fui trabalhar como carpinteiro com o Gerónimo Bandarra, durante um ano, e voltei para a escola outra vez. Quando acabei, fui trabalhar para o escritório da fábrica do Aldite com o Graça Mira, com a Vespa e o Tó Manuel Monteiro. Entretanto, peguei numa guitarra e fiquei apaixonado. E nunca mais fui ao escritório, comecei a tocar. Ao início cantava Folclore. O Victor Moreira ia fazer um grupo de bailaricos, chamado os “Deltas”: era eu, o Zé Manuel Pífano, Sérgio e a Anita que tocava acordéão e sabia música. Os "Deltas" fizeram um percurso pelos bailaricos, íamos para todo o lado. Depois o grupo desfez-se e fui tocar com os “Golden Beach”. Quem pôs o nome à banda foi o Piscarreta, jornalista do Jornal do Algarve.Veio com uma proposta que era “As Amendoeiras em Flor” e toda a gente se mijou a rir. Assim ficámos, as “Praias Douradas”. Ensaiávamos na casa dos irmãos Gloria (macacos para os amigos) com o Eduardo “Chapagem”. Aquilo eram uns ensaios meio música, meio vassourada. Tenho saudades do António, que era como uma malagueta na cidade: um gajo exuberante que contava as asneiras dele, um químico. A seguir tive no “ L’ as Band”. Era eu, o Eduardo “Chapagem”, o João “Macaco” (a tocar Baixo), mas ficou por ali o projecto. Depois, o Santana que tocava nos "Merry Boys" que tiveram várias formações, com o Zé Luís (na guitarra), Carlos “Sorna”, Matoso e João Cesar. Esse grupo acabou por terminar e o Santana convidou-me para uma outra banda, os “NAGS”, que toda a gente na cidade se lembra - a melhor banda do Algarve - com a seguinte formação: eu na guitarra, José Santana também na guitarra, José Valério no baixo, Mário José como vocalista, Hélio na bateria e o Leonardo “Calceteiro”, nas teclas. Começámos a tocar e foi muito bom, mas a banda desapareceu, pois, o Santana foi para a tropa e o Hélio para o futebol.
CL-Como foi o seu trajecto como "Operário da Música" após o 25 de Abril?
AG- Evoluímos e fomos para o conservatório. Eu, o Bandarra, Santana, o Duarte e o Zé “Bossa Nova”. No pós 25 de Abril em 1974, fomos tocar para a discoteca do Hotel Algarve. Naquela altura, muitas unidades hoteleiras tinham um representante do “MFA”, desconfiavam que o dinheiro não ficava em Portugal. Depois fui para os casinos do Algarve: Penina, Vilamoura e Monte Gordo. Fazíamos as folgas das bandas, estive lá muito tempo. No meu percurso também estive na Torralta, na Cabana, com o José “Bossa Nova” e António Ribeiro. Temos um disco com o Alex, o EP “Gaivota Branca”, gravado nos antigos estúdios RR em Lisboa, patrocinado pela Torralta.
CL - Como eram os bailes e festas no decurso da sua carreira?
AG- Um baile no Marítimo no sábado à noite era um grande acontecimento. As pessoas trabalhavam uma semana inteira à espera desta festa, levavam petiscos ou iam comer aos bares. As moças dançavam e a música era absorvida pelas pessoas. Ainda há pessoas que me falam disto! Eu cantava uma música do Alberto Cortes que era o “Las Palmeras”. Começava com um acorde e eu cantava "Las Palmeiras… Oh Mi Corazon…" e a malta levantava-se para dançar, lembro-me deste tempo com uma certa nostalgia. As pessoas daquele tempo absorviam a música que cantávamos, guardaram isso.
CL-O que acha da música desta nova geração?
AG-Esta malta nova..., a música é mais difícil de memorizar, e pode-se constatar isso a todo o momento. Mesmo os músicos do festival da canção, ouve-se naquele momento e não fica. O estrangeiro que cantava Merci Cherry, essas músicas ficavam. Hoje diz-se a alguém para cantar as músicas e ninguém sabe, vivem noutra dimensão. Há vários factores que contribuem para isso. Há peças cujo objectivo é demonstrar o virtuosismo dos músicos em determinados instrumentos, mas o conteúdo não tem nada porque não entra na nossa cabeça.
CL-Como era na sua altura para copiar e tocar as bandas e músicas que ouviam?
AG - Existia uma dificuldade para ensaiarmos uma nova música, não havia nem acordes nem música nem nada. Levávamos horas para copiar e não havia nada. Quando houve a explosão dos Beatles, ninguém conseguia tirar o Rock and Roll. Tirar um texto em inglês era muito difícil, hoje em dia está tudo na internet.
CL- Quais os projectos culturais ou musicais que tem na calha?
AG- O último grupo que tinha e a grande aposta musical da minha vida, eram os "TABEMDÊXA" , com música tradicional portuguesa da região. Eu vou fazer 75 anos , já não posso pensar em projectos, mas tinha uma coisa que gostava de fazer, um espectáculo que chamarei de "Fado Eléctrico", reunir os guitarristas que ainda tocam e fazer uns arranjos de fados conhecidos e tocar essas músicas. Se acontecer, é em Outubro ou Novembro. Lembram-se do grupo “Shadows” a mesma sonoridade, mas para o Fado. Quero levar o Bandarra, o Santana, o Alfarrobinha, o Duarte, o Hélio e o Júlio Toscano.
CL - Vai ficar por este livro ou pretende fazer mais algum?
AG - Vou falar disto em primeira mão. Tenho um livro que encadernei com o jogo das damas. Também escrevi uma peça musical sobre Inês de Castro e Dom Pedro, com músicas minhas e 12 quadras, onde são apresentadas personagens que contam a história que se conhece e existe sempre uma melodia. É um trabalho que está feito e quis que os artistas levassem à cena, mas é complicado pois é preciso saber um pouco de música. Apresentei, mas já lhes disse que ao abrir à comunidade estrangeira que reside em Lagos era possível. Os Ingleses cantam bem e os ucranianos têm uma musicalidade grande e também cantam bem. Era abrir obrigavam os outros a fazer melhor. Tenho esse livro escrito e emprestei à Corinne. Disse-lhe imagina se tivesses de fazer os fatos para isto. Até lhe brilharam os olhos e ela faz as coisas muito bem. Fiz um esforço sobrenatural para escrever a peça, pois é uma peça semi Gil Eanista. Tinha uma dúvida pois uma metade remetia aquela altura e outra era actual, com o Gil Eanes numa mota.
CL - Entretanto saiu de Lagos e procurou novos horizontes, após conhecer a sua esposa...
AG- Em 1978 conheci a minha actual mulher. Era guia turística, no primeiro ano encontrei-a no Hotel Golfinho, estava a tocar piano e foi a primeira vez que nos vimos. Foi uma paixão! No segundo ano ela voltou e eu estava a tocar no casino da Penina. Vejo-a entrar e disse "Já está!". Passaram 40 anos de casamento, deixei os casinos e no fim da época, fui para a Suíça, depois Alemanha e ficamos entretanto a viver nas Canárias. Ela trabalhava como guia e eu como músico, tive várias bandas com elementos de várias nacionalidades e tocávamos à entrada dos bares com instrumentos disponibilizados pelos donos. Depois, houve uma fase em que estávamos uns meses no estrangeiro e uns meses em Lagos, então decidimos ficar e fizemos bem.
“Têm-se esquecido da divulgação, transmissão e promoção do Jogo das damas. E o jogo está-se a diluir…”
CL-O Jogo das Damas é outra paixão do Armindo. De onde surgiu?
AG- Está feito outro livro, não sei quando vou publicar. O "staff" de jogadores em Portugal está velho, mas o melhor jogador de Damas é Português e chama-se Vaz Vieira, era professor de matemática em Coimbra. O "staff" tem jogadores muito bons, mas com o objectivo de ganhar têm-se esquecido da divulgação, transmissão e promoção do jogo das Damas. E o jogo está-se a diluir. Antigamente, todos os barbeiros tinham um jogo de damas, e o jogo ultrapassa aquilo que as pessoas possam perceber. A sua história ultrapassa muito. Eu tenho uma enciclopédia do jogo das Damas que corresponde a uma publicação encadernada de quinze em quinze dias de jogadas durante 40 anos. Hoje, existem 100 felizes proprietários e eu sou um deles. O vendedor da livraria Simões, em Faro, disse-me que tinha uma catrefada de livros de Damas e eu disse-lhe, "Vou já aí!". Aquilo é um espectáculo, com os melhores jogadores dos grandes cafés de Lisboa e Porto e com a narração dos jogos, fases e jogadas. Uma história maravilhosa daquela altura até agora. No tempo do Sporting e Benfica em Damas.
CL - E a sua saúde? Como tem passado após o transplante do fígado há 14 anos?
AG - Estou vivo! Há 17 anos que não bebo uma gota de álcool e não fumo desde os 33 anos. Esse é o segredo. Aparento uma certa fragilidade, mas isso é do estado de espírito. Sinto-me bem. Foi uma coisa dura, pois estive cinco meses no hospital e a equipa do Eduardo Barroso operou-me, mas isso é apenas mais uma experiência de vida. Sou um individuo com muitas vivências e muita esperança.
“(…)tinha uma coisa que gostava de fazer: um espectáculo que chamarei de "Fado Eléctrico"…”