Carlos Conceição
Marta Ferreira
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Nesta edição da rubrica «O que é feito de si?», trazemos-lhe a impactante história de Manuel Luís Arriegas Rocha, ex-combatente da Guerra Colonial Portuguesa (1961-1974), Vereador da Câmara Municipal de Lagos pós 25 de Abril, reformado como Encarregado de Construção Civil e ex-guarda-redes de Futebol.
Entre memórias mais amargas, fotografias antigas, morosas pausas e detalhes que só entende quem viveu, ainda assim, Manuel Rocha emanava um raro sentimento de optimismo, preenchendo a sala com o fulgor das suas palavras. Para Manuel, o 25 de Abril «foi uma alegria», bem como a viagem de regresso a Portugal. Coincidentemente, onde mora existe um letreiro em azulejo português com a inscrição “Casa da Alegria” – detalhe curioso que saltou à vista quando nos recebeu em sua casa para a presente entrevista.
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Quem é Manuel Rocha "Arriegas"?
Manuel Luís Arriegas Rocha, nasceu a 27 de Abril de 1947 (73 anos) e é natural (e residente) na Praia da Luz, em Lagos.
Habilitações académicas: Depois de terminar a 4.ª classe, fez exame de admissão à Escola Industrial (antiga Escola das Freiras em Lagos), que acabou por frequentar por um ano (1960). Não gostava da escola, pelo que se dedicou desde cedo a trabalhar, com apenas 15 anos.
Percurso profissional: A primeira dita experiência profissional foi na Construção Civil, na Companhia do Barlavento, com o Arquitecto José Veloso seu irmão, João Veloso (1962).
Carreira militar: Foi mobilizado para Moçambique em 1968, aquando da Guerra Colonial Portuguesa, onde cumpriu serviço como Cabo de Artilharia.
Destaques na Política: Fez parte da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Lagos no período pós Revolução, até às primeiras eleições livres. Contribuiu, juntamente com o exército do Quartel de Lagos, para a retirada do então regedor da freguesia em Espiche, passando a mesma para a Praia da Luz.
Actividade desportiva: Foi Guarda-redes no Esperança de Lagos, tendo também participado em diversos torneios populares. Também representou a Selecção Militar em Moçambique. «Eu e outros moços alugávamos uma bola no Esperança e faltávamos à escola para ir jogar. Também joguei na equipa da Luz» – desvendou Manuel Rocha, ao apontar para uma fotografia com mais de 56 anos», pendurada na sua sala, que ilustrava a equipa luzense toda reunida. Perguntou se o CL conseguia identificar o terceiro homem da primeira fila, ao que, perante o nosso desconhecimento, indicou com um sorriso que era o seu amigo João Henrique Pereira, pai do actual presidente da Câmara Municipal de Lagos. Recordou, até, que na altura da Guerra Colonial levou uma encomenda para João, que estava também mobilizado noutro local.
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Os tempos de "Esperança"
CL – Jogou por um bom tempo no C.F. Esperança de Lagos. Como recorda esses tempos?
MR – Comecei a trabalhar com 15 anos, a aprender o ofício, e depois entrei no Esperança, nas camadas jovens. Ainda joguei em torneios, como Guarda-redes da CAFI, da IMAAL... No tempo de Salazar havia uma coisa chamada "licença desportista". No meu tempo no Esperança, chegámos a juntar quatro guarda-redes.
Pelo meio, mostrou ao CL a sua licença de Guarda-redes pela IMAAL, que desde logo tinha "à mão".
CL – Que memórias guarda dos afamados torneios?
MR – Lembro-me, por exemplo, dos jogos com o Silves. Era terrível, havia porrada sempre. Recordo-me de, uma vez, estar a jogar lá a Guarda-redes. Num cruzamento, acho que parti ou desmanchei a perna a um moço. Foi só pedradas e nomes... Tive de ser levado dali pela GNR, senão matavam-me.
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Uma vida com granadas à cabeceira
Manuel Rocha foi mobilizado para Moçambique em 1968. A par desta missão, conta ter dado «uma entrevista para o Correio da Manhã, para um programa chamado "A minha Guerra"», há doze anos, tendo mostrado ao CL as páginas onde figurara.
CL – E como se iniciou no serviço militar?
MR – Depois do Esperança, fui para a tropa, para Beja. A seguir, fui para Estremoz. Estivemos um ano e meio no distrito de Téte, no mato, e em várias outras zonas, como a Zambézia. Estivemos num sítio que fazia fronteira com a Suazilândia, e em Maio desse ano, na altura da procissão a Nossa Senhora de Fátima (que eles celebravam lá também), houve uma vez em que a malta da Suazilândia nos convidou para jogar à bola lá. Foi preciso tirar um passaporte e tudo, para irmos jogar fora. Era um país pequenino, do tamanho do Algarve. Estávamos à espera de embarque quando veio a ordem para a grande Operação Nó Górdio, que foi a maior operação feita em Moçambique.
CL – Ou seja, correu perigo de vida...
MR – Corri. Corremos. Houve 17 mortos no distrito de Téte, neste batalhão. Em Trafalgar foi onde a gente sofreu mais. Aquilo era terrível, havia bombardeamentos todos os dias. Vá lá que não morreu nenhum lá.
Da minha Companhia houve dois mortos. Um, de uma granada que rebentou; um dilagrama. Desfez-lhe a carne toda. E outro, por uma água que bebeu. Estava estragada e contaminou-lhe o sangue.
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«Fiquei marcado. (...) Foi terrível. A gente levava granadas e punha capim em cima para fazer altura»
CL – E como é que isso o marcou?
MR – Fiquei mais nervoso, eu sou muito nervoso. Fiquei marcado, muita malta ficou. Foi terrível. A gente levava granadas e punha capim em cima para fazer altura, para dormir. Havia qualquer coisinha e a malta acordava logo.
Lembro-me de uma história: chegámos ao mato no dia 23 de Agosto de 1968, e em Setembro do mês a seguir fizemos uma operação grande. Foram largar a gente a 80 quilómetros, para a gente descer um rio – uma distância como de Faro até Lagos. A operação era para quatro dias, mas levámos cinco porque nos perdemos. Sofremos uma emboscada ao pé do rio, havia um sinal de arma lá no trilho, que caiu e marcou a terra. Pusemo-nos logo "a pau", porque parecia ter sido há pouco tempo. E os "gajos" [resistentes] apareceram com armas à frente da gente. Começou o tiroteio, eles fugiram e nós andámos, andámos... Apanhámos um ataque de "feijão-macaco", um arbusto que nasce na Savana. Aquilo tem umas bagas que, ao tocar, penetram na pele. Tivemos de atar as calças, porque dava uma comichão horrível na carne e não dava para não coçar, mas ao coçar fazia sangue. Foi terrível.
CL – Viu morrer companheiros, camaradas. Como foi lidar com tamanha violência dia após dia? Como se sentia ao ter de matar "em nome da pátria"?
MR – Era matar para não morrer. Eu nunca quis matar ninguém, mas tínhamos de nos defender. Era raro, mas eles [negros] às vezes estavam escondidos, era a nossa reacção... Ainda chegámos a apanhar alguns. Uma vez, numa viagem de regresso, havia uma cantina, de um branco, mais ou menos a meio caminho. A gente parou para comprar algumas coisas lá e um dos nossos guias gritou "Está um turro [atacante] lá dentro!". Era um capitão da FRELIMO [Frente de Libertação de Moçambique], e tivemos de levá-lo preso para o acampamento. Nós não lhes fazíamos nada, a PIDE é que os levava.
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Estar longe, camaradagem e piores momentos em batalha
CL – E tinha colegas conterrâneos ao seu lado? Alguém de Lagos, ou do Algarve?
MR – Sim, estava o Francisco José Furtado, conhecido por "Tira-vidas", aqui da Luz, mas ele estava noutra Companhia. Estava lá também outro de Burgau e um de Sagres, o José Maria, que era o padeiro da gente.
CL – E quanto tempo durou toda essa missão?
MR – Ao todo, foram 26 meses. Abalámos daqui em Julho e chegámos em Setembro. Eu e mais alguns, quando soubemos que tínhamos direito a férias, viemos para Téte para gozar as férias. Tínhamos pouco dinheiro. Eu ganhava, no mato, 1 conto e 140 escudos. Um soldado ganhava 960. Eu trouxe esse dinheirinho e nem que fosse em Téte, estava um mês fora da guerra.
CL – Como é que comunicava com a família?
MR – Através de aerogramas que a gente escrevia.
CL – Que mais recorda do final da guerra?
MR – Quando a gente estava na margem, à espera do embarque. Fomos num Boeing 737 da TAP, foi uma hora e 55 minutos de voo de Lourenço Marques [actual Maputo] até Napula. Depois, de Napula, fomos levados num avião da força aérea, que lançava os páraquedistas, até Mueda. Nessa altura, Mueda era uma zona muito atacada. Ia tudo de avião, foi uma coisa doida. Nessa operação entrou a Marinha, era tudo à volta. O meu batalhão fez o cerco Norte e Sul, foi atacar três bases da FRELIMO. Havia um moço que vinha atrás de mim, quase ao sol posto, quando andava tudo dispersado. O colega que estava comigo é que o matou, eu só vi o vulto dele. Aquilo era uma guerra terrível.
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«Foi em Mueda que apanhei dos maiores medos da minha vida. Sofremos mais num mês na Nó Górdio do que em Téte»
CL – Qual a pior memória que guarda desses tempos? Aquele momento em que pensou para si "Eu não quero fazer isto"?
MR – Foi no primeiro dia, quando chegámos ao mato em Mueda, numa base no Sagal. A operação começou no dia 1 de Julho de 1968 e, ao chegar lá, fomos receber a ração de combate, para no dia seguinte sermos lançados de helicóptero na zona Norte. Já tínhamos uma série de abrigos lá feitos, deixei lá a espingarda e tudo. E de repente começam a cair as morteiradas dentro de onde a gente estava. Foi um dilúvio, uma coisa parva. Fugimos todos. Nesse acampamento, eram atacados todos os dias. No outro dia, no cerco Norte, entrámos num posto avançado que era a base da Eira. Fomos atacados de fora para dentro, previram que íamos lá entrar. Foi em Mueda que apanhei dos maiores medos da minha vida. Sofremos mais num mês na Nó Górdio do que em Téte.
Outra: estivemos a guardar dois meses uma ponte no rio Chiticula. Já tinha sido destruída duas vezes [pela FRELIMO] e tinha de haver lá sempre uma tropa a guardar, porque era a passagem para o lado da Zâmbia, para dar alimentos às outras companhias. Nós tínhamos posto arame farpado à volta do acampamento, com luzes. Jogávamos restos de comida para o pé do riozinho, e durante a noite os leões iam lá comer. Ouviam-se grandes zurros, faziam uma barulheira... Aí apanhei medo, mas nunca chegaram a fazer mal à gente. Comiam e depois desapareciam.
Lá em África havia também uns cães do mato [Mabecos], que eram agressivos; mordiam os pneus, tudo. E esses chegaram a atacar-nos, tivemos de matar três ou quatro para dispersarem. E com hipopótamos também apanhei alguns sustos! Quando armámos o acampamento, numa noite, ouvimo-los a sair da água lá para as 03:00, 04:00 horas da manhã. Foi o nosso primeiro contacto com hipopótamos, mas nunca fomos atacados; andaram só a comer estevas ali à volta. Mas apanhámos medo, e "chovia que Deus mandava" (gíria). Tínhamos umas capas grandes que, juntas, davam para armar uma tenda. Tinha de ficar sempre alguém de serviço [a guardar o acampamento], íamos trocando.
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A bonança depois da tempestade: O 25 de Abril
CL – E como foi saber que tudo tinha terminado? Qual a sensação de regressar a casa [Portugal]?
MR – Foi lindo, foi a alegria da gente. O dia de regresso foi o dia mais feliz da minha vida. A abalar, ia tudo chorando, só tristeza; e a chegar era choro, mas de uma alegria imensa. Para lá, fui no [navio] Vera Cruz e para cá vim no Niassa. Parámos em Moçâmedes, no Sul de Angola, e depois no Funchal, para descarregar uma outra companhia que vinha com a gente. Chegámos ao Funchal em Agosto de 1970, onde voltei 30 anos depois; depois de tudo o que tinha visto.
Pelo meio, lembrou ainda alguns conterrâneos, como «o Barroso» e «o Santos».
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«Recordo-me do dia 25 de Abril. Quando abri o rádio de manhã, comecei logo a ouvir "Golpe de Estado!". Foi uma alegria»
CL – O que é que representou o 25 de Abril (1974) para si? Onde estava quando a revolução se sucedeu?
MR – O mesmo que representou para todos: liberdade. Foi bom para todos, uma alegria. Recordo-me de ir daqui para cima, de manhã, para fazer um serviço no Luz Park, para uma americana. Quando abri o rádio de manhã, comecei logo a ouvir "Golpe de Estado!". Foi uma alegria!
E o dia em que o Salazar caiu da cadeira, estava a gente na Operação Nó Górdio, era tudo a pôr as bandeiras a meia haste. Nós só soubemos um mês depois que o Salazar tinha morrido. Mas já sabíamos que ele tinha caído da cadeira, que estava muito mal e que até já tinham posto a mandar o Marcello Caetano.
CL – Continuou na Construção Civil com o Arquitecto José Veloso quando deixou o serviço militar no Ultramar?
MR – Sim, mas também com outras firmas. Fui encarregado da obra na cooperativa de casas em Sagres, construímos mais de cem casas [firma Vale & Filho]. Também trabalhei algum tempo na Ecotual, em Burgau, que era de um alemão; foi quando construí o Forte de Almádena. O forte estava todo partido, andei lá muito tempo (quase um ano). Tem lá muita parede levantada por mim.
CL – E por acaso não teve mão no Bairro 25 de Abril (SAAL) da comunidade piscatória da aldeia de Meia Praia, em Lagos...?
MR – Ainda lá andei, mas foi a marcar a duna. E em Burgau também.
Já pelo final da conversa, Manuel mostrou-nos algumas fotografias onde surgia acompanhado de jovens moçambicanos – imagens minimamente felizes de entre a tragédia que assolava tais tempos.
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Conflito de paradigmas e os primeiros passos na Política
CL – Ao olhar para estas fotos, parecia existir mais para além de Ultramar versus FRELIMO. Não era só guerra e "defender a pátria"; haviam também momentos de confraternização. Como foi debater-se com essa dualidade face ao povo africano?
MR – (Pausa) A gente fazia o possível. O nosso comandante queria que os trouxéssemos vivos. Cheguei a fazer operações com os rodesianos [habitantes da Rodésia, estado africano não reconhecido, sito ao Sul do continente].
CL – E como tem tantas fotografias dessa altura? Quem as tirava?
MR – Eu tinha uma máquina, mas havia também outras pessoas. E o sargento também tinha uma. Mandei tantas quanto tenho aqui para a América. Namorava com uma americana nessa altura, que tinha conhecido na Praia da Luz. Já falávamos em casamento. Eu queria casar com ela, só que eu disse que chegava em Agosto e o barco só chegou em Setembro... E ela acabou por se ir embora. Mandava-lhe muitas fotografias e falávamos muito por carta.
Por fim, mostrou orgulhosamente ao CL algumas fotografias dos seus últimos trabalhos na Construção Civil, inclusive, uma casa na zona Montinhos da Luz.
CL – E quanto aos tempos de Câmara? Não ficou com o "bichinho" da Política?
MR – Não, não. Entrei para Vereador da Câmara [de Lagos] novinho, tinha para aí 26, 27 anos. Foi quando houve um representante de cada freguesia a fazer parte da Comissão Administrativa liderada pelo "Elói" pós Revolução e até às primeiras eleições livres. Eu tinha o pelouro das obras e, além das reuniões de Câmara – que eram de quinze em quinze dias – eu tinha sempre uma reunião com o Elói Abreu e o José Fogaça nos Serviços Municipalizados.
Convidaram-me várias vezes, mas só entrei depois numa lista do PRD [Partido Renovador Democrático]. Até tenho uma fotografia com o Ramalho Eanes! Conhecemo-nos pelo Comendador Cândido Igrejas, almoçávamos todos. Andei muito activo naquela altura, mas depois dediquei-me ao meu trabalho.
CL – Conte-nos, por favor, como se deu a retirada do antigo regedor da Junta de Freguesia de Espiche.
MR – Ele tinha um selo da Junta lá na taberna de Espiche, e as pessoas iam lá com papéis para assinar. Mas ele estava sempre a jogar às cartas e em vez de despachar as pessoas, respondia-lhes sempre: "Venha buscar daqui a dois, três dias" e não largava as cartas. Com a revolta do 25 de Abril aqui – novos e velhos –, a malta – que ia a pé e vinha – estava tão revoltada que se juntou para ir a Espiche. Trouxemos as Forças Armadas e eles tomaram conta daquilo! Nesse dia, elegemos logo o Presidente da Junta, o José Neto "Zé Sapateiro". Foi o primeiro presidente de junta que impusemos até às eleições.
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Actualidade
CL – Como vê a pandemia de Covid-19?
MR – Está muito mal. O Governo também tem actuado muito mal nisto... Eles [Governo] têm de fazer o que os outros países fazem, que é pedir o teste no aeroporto, e quem estiver infectado não passa de lá.
CL – Acompanhou as Presidenciais 2021? Se sim, enquanto alguém que sofreu na pele com a ditadura, o que acha desta expansão da extrema direita em Portugal?
MR – A extrema-direita na Europa está em subida: na Polónia, na Hungria, em França... Ainda há muita malta com ideias fascistas.
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In: Edição Impressa do Jornal Correio de Lagos nº364 · FEVEREIRO 2021