À semelhança de anos anteriores, a edição impressa de Março do jornal Correio de Lagos (CL) dedicou especial destaque ao Dia Internacional da Mulher, desta vez, ao inaugurar uma nova rubrica. Intitulada “Lugar de mulher... É onde ela quiser!”, a ideia é conceber um espaço mensal recheado de menções no feminino, fazendo jus ao propósito desta data: dar voz às mulheres, neste caso, àquelas que diariamente acrescentam de si às Terras do Infante.
Para começar, trazemos à estampa Sara dos Reis, original de Budens, no concelho de Vila do Bispo.
Marta Ferreira
Beatriz Maio
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«É uma grande asneira as pessoas deixarem de fazer o que querem. (...) Noutro tempo era um atraso de vida. E eu, que fui criada com tanta miséria... Se tivesse tido uma vida boa em solteira, não sei se me teria casado»
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Sara dos Reis, 83 anos, nasceu em Budens mas reside em Lagos desde cedo. Define-se como «ambiciosa» e «esforçada», tendo começado a trabalhar ainda pequena, para ajudar a família. Viúva e mãe de dois filhos, Sara foi uma das muitas operárias que contribuiram para a Indústria Conserveira local nas décadas de 60 e 70, na altura contra a vontade do marido.
Além do papel de mãe e dona de casa, muitos foram os turnos passados a enlatar peixe – primeiro na Fábrica da Ribeira e mais tarde na Fábrica do Aldite. Fora isso, tentava amealhar como podia, tricotando meias e casacos de lã até altas horas da madrugada, sempre com o intuito de dar o melhor aos filhos.
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Acesso à Educação
Ainda em Budens, Sara completou apenas a terceira classe, muito em parte devido às dificuldades que se faziam sentir antigamente. Contou ao CL que gostava de ter sido professora e que «era boa com contas». Tem pena de não ter continuado, mas não era fácil: «Só os meninos e meninas de gente que tinha posses é que seguiam estudos, o resto ficava com a terceira ou quarta classe».
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Juventude e trajecto de vida
Na altura, a família Reis produzia queijo. O pai de Sara guardava gado e, entre seis irmãos, esta ajudava como podia – afinal, era apenas uma criança de 10 anos quando tudo começou. Atravessava a serra de burro diariamente e ia buscar o avio. Depois, dedicava-se ao ofício, moldando e secando os queijos. «E o engraçado é que eu nem gosto de queijo (risos)», brincou. Além de cozinhar, limpar e arrumar, era também Sara quem amassava e cozia o pão para que todos pudessem comer.
Para fugir a este cenário de miséria, Sara casou-se com apenas 17 anos, no dia de Natal, por Procuração, porque o marido, na altura pescador, fazia grandes temporadas fora e os gastos não abriam margem a festejos: «Casei à Igreja, tal e qual, ele em Peniche e eu cá. Quem foi o meu noivo “a fingir” foi o meu cunhado, o irmão mais velho dele. Falavam no meu marido, no Jorge, mas o irmão é que estava lá. Assim poupava-se dinheiro, não se fazia festa de casamento e não havia confusão nenhuma sobre esse assunto. Depois, na semana a seguir, ele [Jorge] veio para Budens», contou.
De salientar ainda que Jorge também não tivera uma infância fácil – detinha apenas a 1.ª classe e começara a trabalhar com os seus meros 7 anos. Neste sentido, a ideia de casar surgiu no horizonte de ambos como solução para escapar a tal condição: «Os meus melhores anos foram enquanto casada», revelou Sara.
Aos 18 é mãe pela primeira vez. Anos mais tarde, e devido à profissão do marido, Sara acaba por ir com a família para Peniche, onde nasce a segunda filha do casal. Passados cerca de dois anos muda-se para o Chinicato e, só mais tarde, para Lagos, tendo residido na Rua das Alegrias e, posteriormente, na Rua do Ferrador, sempre em casas alugadas. A primeira casa que comprou foi no Bairro dos Pescadores, graças ao Plano de Habitação camarário implementado após o 25 de Abril.
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Trabalho e vida conjugal
Em solteira, chegou a trabalhar na monda do arroz. Mas à luz de uma época tão diferente para as mulheres, e ao contrário do que se sucede hoje, Sara desvendou ao CL que, depois de casar, o marido não queria que esta trabalhasse fora: «O meu marido não tinha ordenado certo, mas não queria que eu fosse trabalhar. Aquilo foi um inferno. Se apanhasse peixe, lá ganhava alguma coisa; se não apanhasse, muitas vezes não ganhava. Ele não queria que eu fosse trabalhar porque queria chegar a casa e que eu estivesse lá para fazer o almoço, para limpar... Eu criei os meus filhos sem ir trabalhar porque ele não queria, mas eles estavam a crescer e eu precisava de os vestir, calçar e pagar as despesas da escola. Pagava 300 escudos de renda de casa na altura».
Deparada com estas dificuldades, eis que Sara toma uma atitude: «Eu via que o dinheiro que ele ganhava não chegava e isso fez-me ir trabalhar para a Fábrica da Ribeira. Disse-lhe “Vou trabalhar. Os meus filhos precisam de ajuda, o que tu ganhas não dá para estas despesas todas, já basta ter a renda de casa fixa”. E ele respondeu-me: “Não vais nada trabalhar”, e eu disse: “Vou, sim senhora! Trabalhar não é defeito, não é desonra nenhuma. Vou, porque um dia quando for velha, não tenho reforma. Se não desconto, não ganho”. Esteve amuado comigo quinze dias, não falava comigo. “Não quero discussões”, dizia-lhe eu. E foi assim».
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Memórias de sacrifício
Mas ao contrário do que seria expectável em tais tempos, Sara era quem geria o dinheiro da família: «Naquela altura não se podia gastar. Eu tinha que gerir o dinheiro, não era o meu marido. E mesmo quando comecei a trabalhar com o banco, eu é que ia lá. Ele nunca tinha vagar para ir a lado nenhum, confiava em mim para gerir as coisas. Para fazer a escritura da nossa primeira casa, fui sozinha. Eu podia comprar, não podia era vender. Levava os papéis dele e pronto», deslindou.
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«Naquela altura não se podia gastar. (...) Poupei muito, comi muitas vezes a mesma coisa»
Sara nunca se acomodou perante a realidade. Tendo crescido pobre, por vezes sentia-se “de mãos atadas”. Ainda assim, procurou sempre lutar pelo que sonhara, fosse contra quem fosse: «Comprei a casa dos meus pais em Budens por 20 contos, sem o meu marido saber. A casa não era deles e eu comprei para eles ficarem lá, fiz uma casa-de-banho e outras coisas que não tinha, pus esgotos... Poupei muito, comi muitas vezes a mesma coisa. Se não podia comprar uma roupa para mim, não comprava. Comprava para os meus filhos, se eles tivessem falta. O meu marido não fez nada. A iniciativa de mudar de casa foi toda minha, lutei bastante para isso».
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Política
Numa época em que a precaridade do Ensino era uma constante, a maior arma do Antigo Regime salazarista era o medo incutido nas camadas menos letradas da população. Posto isto, Sara relembra o pavor que tinha de “escutas”: «Não lia jornais e tínhamos medo de estar na rua. Eu tinha o aparelho para ouvir os barcos no mar, para saber quando o meu marido vinha a terra, e de noite até tinha medo de ter aquilo aceso por causa das escutas. Foi uma miséria de época. Conhecia gente mais velha que teve desacatos com a PIDE, sabíamos que havia controlo. Naquela altura não se podia discutir nada, nem Política. Eu nem queria ouvir falar disso, tinha medo».
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Dos velhos tempos à actualidade
É certo que antes da Revolução de Abril as oportunidades para homens e mulheres eram diferentes, bem como as expectativas de servilismo. Sara confirma-o dizendo que «as mulheres só tinham oportunidade de ir para a casa das senhoras servir e fazer limpeza porque eram coisas que os homens não faziam. Era bastante injusto». E acrescenta: «Os homens não faziam nada, as mulheres é que tinham que fazer o governo. Desde pequenina que aprendi a fazer tudo. Os meus irmãos homens não paravam em casa, foram servir e quem ficava a aguentar o barco era eu. Os meus filhos nunca passaram por isto».
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«O meu marido dizia que as pinturas eram para as mulheres da vida. (...) Depois de enviuvar é que comecei [a pintar-me], já não tinha quem mandasse em mim. (...) Maquilhagem não ofende ninguém!»
Adiante, apontou especificamente alguns aspectos em que a desigualdade entre géneros se fazia também sentir, como, por exemplo, em matéria de indumentária e expressão individual: «Naquela altura não se usavam decotes, nem pensar. Eu não podia pintar os lábios, não podia fazer nada; nem pintar as unhas. O meu marido dizia que as pinturas eram para as mulheres da vida. Fui casada com ele 51 anos, nunca me pintei. Depois de enviuvar é que comecei, já não tinha quem mandasse em mim. Eu gostava de me ver. É uma grande asneira as pessoas deixarem de fazer o que querem. Maquilhagem não ofende ninguém! Noutro tempo era um atraso de vida. E eu, que fui criada com tanta miséria... Se tivesse tido uma vida boa em solteira, não sei se me teria casado».
Também os passatempos eram diferentes: «Os homens saíam ao fim-de-semana e as mulheres ficavam em casa. Havia tantas diferenças entre homens e mulheres... Nunca saía sozinha. Eles iam para a taberna, a gente ficava em casa a fazer o governo. Vinham e queriam ter ali a comida feita. Aos fins-de-semana, quando havia os bailaricos aqui em Lagos, tinha que ir sempre na companhia do meu marido». E desabafou: «Neste tempo, as mulheres têm mais privilégios do que naquela altura. Foi uma mudança boa».
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«Eu queria ir à praia; queria correr mundo. Tais coisas (...) só não tive em nova porque não havia dinheiro»
Além disso, e embora já numa fase pós Revolução, os resquícios do machismo eram ainda evidentes. Sara sempre ambicionara ter carro próprio, algo que o marido não via com bons olhos. Inscreveu-se nas aulas de código já depois dos 50 e comprou o primeiro veículo pelo próprio mérito. «Há homens que não querem que as mulheres sejam mais que eles. “Agora vais comprar um carro para quê? Faz alguma falta o carro?”, dizia-me ele. De manhãzinha, punha-me lá na salinha e ficava de volta dos livros. Passado um bocado vinha de lá ele outra vez: “Estás aí com essa massada toda para tirares a carta?” e eu respondia: “Tu não tiraste porque não quiseste. Porque é que não me deixas?”. E ele sempre contestando», revelou.
«Eu tinha os meus filhos, queria ir à praia; queria correr mundo. Tais coisas – como o carro – só não tive em nova porque não havia dinheiro. Quando comprei um de três portas, sempre que andávamos ele reclamava de eu não ter comprado um com cinco. Nunca nada estava bem, tinha sempre que pôr defeitos. Então comprei outro carro, também a pensar nas netas. Quando íamos para a praia, em Sagres, metia-me com ele e dizia: “Então, sabe-te bem? Agora já não apanhas vento” e ele não me respondia (risos)».
Saiba mais detalhes sobre o percurso de Sara dos Reis na edição de Março da Revista Nova Costa de Oiro, acessível gratuitamente em www.novacostadeoiro.com.
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In: Edição Impressa do Jornal Correio de Lagos nº365 · MARÇO 2021