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Saúde mental: Os efeitos da pandemia e as implicações no desporto

Saúde mental: Os efeitos da pandemia e as implicações no desporto

Num ano em que a saúde mental fez parte dos temas mais abordados pelas variadas razões, o Correio de Lagos destaca o dia mundial, que se assinala a 10 de Outubro, com uma reportagem que realça as implicações da pandemia, os cuidados que nem sempre são tidos em consideração e de que forma está implícita na prática desportiva. Não só o confinamento veio reforçar a importância deste tema, como também os Jogos Olímpicos que se deveriam ter realizado em 2020, mas devido à Covid-19 apenas este ano Tóquio recebeu os melhores atletas do mundo.

Beatriz Maio

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Como resultado da propagação do coronavírus, deu-se uma alteração repentina das rotinas, o que resultou no medo e ansiedade relativamente ao presente e futuro. O modo de ensino e de trabalho sofreram alterações, assim como as dinâmicas familiares. A população mundial viu-se forçada a cumprir com restrições de saúde, nomeadamente o distanciamento físico e social, o que, em conjunto com a crise socio-económica, poderá certamente ter influência na saúde mental.

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Uma perspectiva da área da psicologia

Íris Coelho, tem 29 anos, é natural de Almada, licenciada em Psicologia e mestre em Psicologia Clínica e da Saúde. Como parte do seu percurso académico realizou formação e estágio na Dragon Force do Futebol Clube do Porto. Foi em Lagos que cresceu, passou a sua adolescência e integrou o Clube Desportivo Gil Eanes pela modalidade de andebol.

A incerteza a que os indíviduos passaram a estar expostos derivada de uma situação execpcional, nova para todos, aumenta, segundo a psicóloga os níveis de stress, reduz o bem-estar e intensifica problemas psicológicos. Íris tem conhecimento de que houve um agravamento dos sintomas de quem já lidava com problemas deste foro anteriormente e relatos de quem os experienciou pela primeira vez, «principalmente ligados a questões de ansiedade e de depressão», especificou.

Com base em vários estudos, aponta a faixa etária entre os 13 e os 24 anos como a que sofreu um maior impacto no decorrer do último ano, apresentando um nível elevado de sintomas negativos. Apesar de serem os adolescentes e jovens adultos os mais afectados, todos lidaram com o impacto causado pelas novas normas de saúde.

«Cada vez mais pessoas têm consciência do que é a saúde mental, mas nem tanto sobre como a promover e manter. É algo que ainda não é largamente abordado»

A psicóloga acredita que esta falta de noção de como cuidar do bem-estar psicológico poderá ser causa da insuficiência de informação neste sentido, bem como de promoção de debates educativos, laborais e desportivos. São diversos os locais onde se aborda este tema, mas existe ainda uma inconsistência assentuada de acordo com a área profissional. Por exemplo, são várias as empresas de Informação Tecnológica (IT) que contam com informação e workshops a este nível, o que não se reflecte em todas as profissões ou locais de trabalho.

Em Portugal, a Direcção-Geral de Saúde (DGS) tem o dever de elucidar os cidadãos neste sentido, contudo, não só não garante que todos tenham acesso, como divulga pouca informação no seu website www.dgs.pt. É verdade que existe bastante informação online, mas nem toda fidedigna ou credível, pois pode ocorrer que não esteja correcta. Os eventos e inciativas promovidas pela DGS não abundam, bem como os materiais de divulgação. Assume-se que os cuidados a ter com a saúde mental deverão estar disponíveis para todos, mas o mesmo não se verifica. Entre Janeiro e Julho, o Instituto Nacional de Emergência Média (INEM) registou um aumento de 24% nos pedidos de ajuda por situações de saúde mental e nos contactos por parte das faixas etárias mais novas.

Lagos, depara-se com a mesma situação vivida a nível nacional: a existência de um estigma ainda por quebrar sobre a psicologia e a saúde mental. No entanto, Íris pensa que se verifica cada vez mais uma procura de auxílio para lidar com questões do foro psicológico, o que levará a uma mudança. Ainda que a pandemia tenha acrescido a procura de serviços de psicologia e saúde mental, a psicóloga relembra que «há locais onde o tempo de espera por uma consulta é de largos meses». Assim, afirma que «é expectável que sejam empregados mais psicólogos, quer a nível público como privado» para que esta área possa ser mais acessível a todos.

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Na prática desportiva

Atletas de alta competição lidam com stress diariamente, deparam-se com uma pressão que se poderá reflectir em problemas psicológicos e na deterioração da saúde mental, segundo a jovem psicóloga. A origem deste sentimento não tem, muitas vezes, um motivo único, sendo diversas as adversidades, em simultâneo, a que estão sujeitos, como expectativas, lesões, derrotas, cargas de treinos, sacrifícios ao nível da vida familiar e social, final de carreria, entre outras.

Ainda que se reconheçam como fundamentais vários profissionais de outras áreas ligadas ao desporto para potenciar o desempenho dos atletas, os profissionais de psicologia raramente integram este grupo.

«Grande parte dos clubes, de diversas modalidades, não aborda questões de saúde mental. E isto deve-se, maioritariamente, a dois factores: falta de informação, que leva ao estigma para com a psicologia em Portugal, e falta de apoio e infra-estruturas nos clubes», expõe, alertando para a necessidade de criação de estratégias suficientes ou adequadas para lidar com os obstáculos existentes, de forma a não comprometer a saúde mental dos que competem profissionalmente.

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Um olhar de quem ensina

Bruno Teodósio ocupou a posição de treinador de Patinagem Artística no Roller Lagos de 2014 a 2020. O seu percurso desportivo começou muito cedo, aos 10 anos era já atleta de patinagem artística pelo Sport Lisboa e Benfica (SLB), o que se prolongou ao longo de treze anos. Foi bailarino profissional durante uma década com vários trabalhos em publicidade, televisão e teatro e desde 2011 que é treinador desta modalidade desportiva.

Devido à pandemia suspenderam-se treinos e adiaram-se competições, uma situação que não foi fácil de lidar por parte dos atletas. Muitos preparavam-se há meses e viram-se forçados a parar, o que condicionou as suas capacidades e objectivos. Como consequência, Bruno presenciou uma elevada percentagem de desistências por parte de atletas de competição, maioritariamente entre os 16 e 19 anos.

Na sua opinião, os atletas ainda não estão seriamente conscientes em relação ao que implica cuidar da sua saúde mental. A alta competição é um factor de enorme relevância neste âmbito e, a seu ver, é possível atingir níveis consideravelmente mais elevados de rendimento e autoconfiança, bem como de conhecimento pessoal, social e desportivo quando se tem em atenção a existência de problemas psicológicos. Crê que esta é uma preocupação a ter em todas as faixas etárias, devendo-se ajustar a cada atleta conforme a sua maturidade.

Competir profissionalmente promove benefícios, entre os quais, de acordo com o treinador, a promoção de maior percepção da vida social e profissional, possibilitando adquirir competências que facilitarão a inserção na sociedade. No entanto, gera também desvantagens, principalmente associadas à pressão sentida e à forma como é ou não gerida. Esta sensação poderá derivar do próprio atleta ou ser proveniente de familiares, colegas e membros do clube de que faz parte.

«Muitas das vezes o atleta sente o "peso do mundo" nos seus ombros pensando que depende de si e da sua vitória o bem-estar e alegria comuns, esquecendo-se que o sucesso que por ele poderá ser alcançado será o mais importante tanto para ele próprio como para a sua formação»

O coronavírus não originou apenas factores negativos, começou-se a recorrer a ferramentas online que anteriormente não se aplicavam. A obrigatoriedade de isolamento proporcionou que os treinadores tivessem mais tempo para investir na sua formação e conhecimento em diversas áreas de forma a auxiliar ainda mais os seus atletas.

Embora exista ainda um longo caminho a percorrer, de forma a que melhores condições sejam asseguradas aos atletas a nível psicológico, este é um tema que, por fim, começa a ser debatido em ambientes desportivos. O treinador acredita que as formações a que os membros dos clubes tiveram acesso durante a pandemia irão contribuir para o desenvolvimento desta vertente e clarificar a sua dimensão.

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A visão de uma atleta lacobrigense e agora personal trainer

Joana Santos, tem 24 anos, é lacobrigense, licenciada em Desporto pela Universidade do Algarve, com mestrado em Exercício e Saúde pela Faculdade de Motricidade Humana – Universidade de Lisboa. A prática de atletismo esteve sempre presente na sua vida. De atleta passou para treinadora, em 2015 começou a treinar as camadas jovens do Olímpico Clube de Lagos. Após concluir a licenciatura, em 2018, iniciou-se como personal trainer em Lagos.

Seguiram-se dois anos em que se mudou para a capital e, de regresso a casa, com os estudos concluídos, em conjunto com a família, criou o projecto Elite Wellness by Santos – um ginásio ao ar livre. Com as condições pandémicas a melhorar, surgiu a ideia de ampliar o negócio com a abertura de um espaço físico.

O seu ponto de vista não difere do exposto anteriormente pelos dois profissionais. Julga que ainda não se atribui a importância devida à saúde mental ou à sua divulgação, que deveria ter início na infância, tanto em contexto escolar como em ambiente familiar. Aponta a desinformação como causa de desinteresse, mencionando que «é uma área tão importante como a saúde física e deve ser promovida e falada abertamente por todos». Referiu até que «muitas vezes os sinais e sintomas chegam a ser menosprezados» e até considerados «irrelevantes», não só pelos doentes como também pelos profissionais de saúde.

Joana pensa que tanto espaços de ensino como locais de trabalho deveriam ter uma preocupação maior em relação à saúde mental para amenizar o preconceito existente. Comentou que é necessário «acabar com a ideia de que só os outros é que têm doenças mentais e que quem tem não deve ter vergonha de falar sobre o assunto», acrescentando que «são necessárias mais formações sobre o tema e momentos no ano escolar dedicados à saúde mental».

«Os ginásios foram os primeiros a fechar e os últimos a abrir. Um erro. Fecharam uma das soluções para combater a pandemia»

Na óptica da personal trainer, seria impensável restringir-se os locais de prática de exercício físico «durante tanto tempo e com tantas restrições». Vê os ginásios como locais de promoção de saúde física e mental, utilizados como um «escape» por quem sofre de ansiedade. De repente, quem vivia com esta condicionante, e a controlava deste modo, viu-se impossibilitado de a monitorizar e quem não sofria ou não tinha conhecimento experienciou pela primeira vez os sintomas, estando privado de recorrer a esta alternativa.

Relembra que, embora por muitos o exercício físico não seja associado a um promotor de saúde, traz inúmeros benefícios: «A libertação de endorfinas – hormonas que causam sensação de bem-estar – durante e após o treino melhoram o humor, aumentam a disposição física e mental e dão uma sensação de felicidade, algo que promove uma boa saúde mental». Nas palavras de Joana, a prática de actividade física, para além de melhorar a auto-estima, tem também uma componente social pois permite o convívio entre praticantes.

Ainda que a saúde mental não seja um tema abordado em muitos contextos, Joana admite que em ginásios existe a preocupação de transmitir conhecimentos aos clientes, o que é ainda mais acentuado em ambientes intimistas, como avaliações ou treinos personalizados. Debater esta questão permite ao profissional realizar um acompanhamento mais específico.

«O personal trainer tem um papel muito activo na forma como o cliente percepciona o conceito de saúde», reforça. Sente que o seu trabalho poderá ser descredibilizado, visto que Portugal não assume profissionais de exercício físico como profissionais de saúde, daí existir também necessidade de explicar aos clientes que o seu trabalho é realizado com o intuito de melhorar a saúde de cada um.

Para colmatar as consequências negativas do desporto de alta competição, Joana defende que é fundamental trabalhar com uma equipa multi-disciplinar, tanto durante o período preparatório como no de competição, sendo que o rendimento dos atletas é influenciado não só pela aptidão física, mas também mental.

«É imperativo os atletas serem preparados mentalmente para um momento tão importante como os Jogos Olímpicos ou um Campeonato Mundial», confessa, salientando que é necessário que quem compete tenha conhecimento de como agir em situações de pressão, euforia, decepção e tristeza: «Esta preparação tem que acontecer a par da preparação física», rematou.

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Três perspectivas distintas por parte de profissionais de áreas onde a saúde mental está bastante presente. Testemunhos de quem lidou com o impacto da pandemia e sentiu o medo e a ansiedade dos outros. A vida de muitos passou de activa a, por um período, sedentária. O desporto foi posto de lado, assim como os convívios e até a deslocação para o local de trabalho e ensino, o que resultou num enorme impacto a nível psicológico em todas as idades. Aos poucos, regressam as competições desportivas e começa-se a sentir uma proximidade à normalidade. Agora, esta é uma temática que, mais do que nunca, é discutida esperando-se que surjam, consequentemente, algumas mudanças.

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