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Quem garante “a defesa do interesse público” no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina?

Quem garante “a defesa do interesse público” no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina?

Sines coloca finalmente ordenamento do território e conservação da natureza na agenda política

Na sequência da última comunicação ao País do Primeiro-Ministro (PM) demissionário, António Costa, o movimento de cidadãos Juntos pelo Sudoeste congratula-se pelo chefe do Governo da República Portuguesa ter, finalmente, valorizado publicamente o património ambiental do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina e relembrado o dever da responsabilidade da administração pública na tomada de decisões, neste ou em qualquer território, com base na defesa do interesse público.

Esta comunicação surgiu no contexto do processo “Influencer,” com base numa alegada teia de influências e favores, tendo como um dos principais eixos o projecto de um enorme centro de dados em Sines, a implantar parcialmente em área classificada como Zona Especial de Conservação (ZEC) - Rede Natura 2000.

No seu discurso, o PM focou o “dever” de atrair investimento e criar condições para o mesmo, “compatibilizando” e “reduzindo o conflito” entre a ambição da indústria de Sines e a sua classificação primeiro como Área de Paisagem Protegida do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (APPSACV, 1988), depois como Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV, 1995) e finalmente como parte integrante da Rede Natura 2000 (Sítio Costa Sudoeste, 1997), com alteração dos seus limites em 2019 (Resolução do Conselho de Ministros n.º 18/2019, de 23 de janeiro) e consequente passagem a Zona Especial de Conservação em 2020 (Zona Especial de Conservação da Costa Sudoeste, Decreto Regulamentar n.º 1/2020, de 16 de março). Ora, o Juntos pelo Sudoeste salienta agora que basta substituir “a ambição da indústria de Sines” pela da agricultura intensiva do Aproveitamento Hidroagrícola do Mira (AHM) para desembocarmos precisamente numa situação idêntica, mas de dimensão mais significativa, apenas uns quilómetros mais a sul, no mesmo PNSACV, igualmente ZEC Rede Natura 2000.

Vejamos então, resumidamente e por pontos:

1) Em 2016 uma acção de inspecção da Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT) ao cumprimento das normas aplicáveis às actividades agrícolas integradas no Perímetro de Rega do Mira, previstas no Plano de Ordenamento do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (POPNSACV), com vista à “compatibilização da sua implementação com a regulação de ocupação do solo que visa a protecção e valorização dos valores naturais e, simultaneamente, o desenvolvimento das actividades humanas conducentes a um desenvolvimento sustentável” deu origem, em 2017, a um relatório que espelhava inúmeras irregularidades na aplicação da legislação aplicável ao PNSACV. Este relatório foi homologado no início de 2018 pelo então Ministro do Ambiente João Pedro Matos Fernandes, ressalvando que algumas das questões seriam resolvidas pela passagem do Plano de Ordenamento do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (POPNSACV) a Programa Especial do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PEPNSACV) que se previa estar pronto em 2018. Na realidade, nem o PEPNSACV saiu do papel, nem o referido relatório da IGAMAOT saiu da gaveta. Matos Fernandes e também o então Ministro da Agricultura, Capoulas Santos, tomaram conhecimento de irregularidades generalizadas das actividades agrícolas num território “protegido”, de enorme sensibilidade, e não agiram.

2) Entre outras iniciativas, o Juntos pelo Sudoeste interpôs em 2021 uma acção no Tribunal Administrativo de Beja e uma queixa à Comissão Europeia, tendo como base algo de que agora se fala com frequência: a convicção de que toda a agricultura intensiva no AHM deveria ter sido sujeita a Avaliação de Impacto Ambiental pelos seus inequívocos efeitos cumulativos neste território, supostamente protegido. Esta posição foi reforçada pelas notícias sobre a destruição de vários charcos temporários mediterrânicos devido à instalação de estufas, tratando-se de “um habitat raro, frágil e prioritário na conservação” cada vez mais ameaçado no Sudoeste de Portugal, que foi inclusive alvo de um projeto de conservação financiado pela Comissão Europeia, no valor de dois milhões de euros, conhecido como LIFE Charcos. No entanto, nada aconteceu e ninguém foi responsabilizado pelo descalabro ambiental na região.

3) Em 2021 um surto de COVID-19 entre a comunidade de trabalhadores imigrantes desmascarou uma "realidade que não é nova, nem nos era desconhecida", afirmou na altura António Costa, e que trouxe para o conhecimento geral a necessidade de combate ao tráfico humano: “passa por criminalizar quem recorre ao serviço das vítimas”, o que pouparia o sector agrícola, uma vez que este recorre a duvidosas empresas prestadora de serviços. Mesmo reconhecendo que Odemira não estava nem está preparada para acolher o volume crescente de imigrantes que procuravam e continuam a procurar a região, a reacção do Governo naquela altura cingiu-se à questão da habitação, promovendo a assinatura de dois memorandos de entendimento: um com o Município de Odemira para alojar imigrantes com trabalho permanente, através de uma Estratégia Local de Habitação, e outro com as associações do sector hortofrutícola, promovendo a habitação em contentores no interior das explorações para os trabalhadores sazonais, com recurso a fundos comunitários. Foi de tal forma óbvia a procura de uma solução rápida, ultrapassando o regime jurídico da urbanização e edificação e o POPNSACV, que até o ex-autarca José Alberto Guerreiro afirmou: "esta é mais uma cedência aos interesses do lóbi dos frutos vermelhos que ficam com caminho livre para ocupar a totalidade do Perímetro de Rega do Mira com estruturas cobertas e para esconderem em guetos no interior das suas propriedades os trabalhadores imigrantes". Como parceiros deste "memorando de entendimento" estiveram a Portugal Fresh, a Associação dos Horticultores, Fruticultores e Floricultores dos Concelhos de Odemira e Aljezur (AHSA) e a Lusomorango.

4) Em Fevereiro deste ano, o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), sob a alçada do Ministério do Ambiente e Ação Climática (MAAC), reconheceu em reunião mantida com o movimento Juntos pelo Sudoeste que há muito tempo se dão inúmeros incumprimentos e situações duvidosas na agricultura industrial do AHM, com conhecimento da Direcção Geral da Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR), entre outras entidades, perante a insuficiência de meios da entidade que mais deveria zelar pelos valores naturais em Portugal.

Por outro lado, a alínea a) do ponto 9 da Resolução de Conselho de Ministros n.º 179/2019, de 24 de Outubro, posteriormente alterada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 69/2021, de 4 de Junho, e cujo propósito seria o de supostamente proteger o PNSACV, estipulando um limite máximo de 40% para a ocupação de culturas sob coberto, tem sido alvo de diferendo entre o MAAC e o Ministério da Agricultura e Alimentação (MAA). Enquanto que o MAA e a DGADR interpretam a mesma tendo por base a área total do AHM*, maximizando assim a área coberta e permitindo a continuidade da mesma, o MAAC e o ICNF, interpretam essa mesma alínea com base na área por prédio**, o que permite descontinuidade e criação de mosaico da paisagem. A primeira interpretação prejudica o ambiente, a segunda favorece os habitats e a biodiversidade. Enquanto os ministérios responsáveis não se articulam e não agem, a agricultura debaixo de plástico cobre parcelas consecutivas de centenas de hectares e continua a destruir habitats únicos.

* Interpretação confirmada ao nosso movimento pelo Secretário de Estado da Agricultura.
** Interpretação confirmada ao nosso movimento pelo Ministro do Ambiente e Ação Climática, pelo Secretário de Estado da Conservação da Natureza e Florestas e pelo ICNF.

5) Sabendo que:

- Em 2022 só foi possível fazer uma campanha de rega no AHM recorrendo a uma descida do nível de tomada de água da cota 114,70 para a cota 106 da albufeira de Santa Clara, autorizada pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) através de uma adenda “excepcional” ao contrato de concessão desta albufeira (contrato esse que de qualquer forma já estava a ser desrespeitado em várias alíneas), justificada pelo oportuno pretexto de garantir o abastecimento público de Odemira.

- Para a campanha de rega de 2023, a APA foi autorizada pelo Ministro do Ambiente e Ação Climática, Duarte Cordeiro, novamente a título “excepcional”, a permitir nova tomada de água abaixo da cota que está actualmente estipulada em contrato de concessão, a 106, até uma cota-travão ainda mais baixa, a 104, desde que cumpridos os pontos presentes no Acordo para a gestão sustentável da água1 (um documento sem expressão jurídica que permite mais uma derrogação a um contrato assinado pelo Estado), assinado a 16 março 2023 entre a APA, a DGADR, a Câmara Municipal de Odemira, a Associação de Beneficiários do Mira (ABM) e a Águas Públicas do Alentejo;

- Após as chuvas intensas de Outubro, a reserva de Santa Clara situa-se ainda abaixo da cota 106. A meros meses de nova campanha de rega de 2024, a água disponível entre a cota atual e a cota-travão 104 situa-se à volta de 11Hm3, o que irá comprometer essa campanha de rega, pelo menos para todos os regantes.

Qual a legitimidade contratual da prometida cota 104, quem vai garantir que esse ponto do acordo assinado será cumprido e que essa cota será mesmo o limite à retirada de água para irrigação?

Quer no caso de haver um fecho “implacável” da torneira na cota 104, conforme garantiu o secretário de Estado do Ambiente ao Juntos pelo Sudoeste, quer no caso de se prosseguir com a exploração insana de Santa Clara, quem irá retirar as consequências de um descalabro social, económico ou ambiental?

6) Todo o ano de 2023 tem sido marcado por uma forte disputa pela água no seio da agricultura do AHM e, claramente, a agricultura fez tão bem o seu lobby que a ministra da tutela Maria do Céu Antunes, por via de nova portaria, acabou por classificar os pequenos frutos, nos quais se incluem os frutos vermelhos cultivados em vaso, como uma cultura permanente, de forma a que fossem consideradas prioritárias e cumprindo uma das exigências da DGADR relativamente ao Plano de Contingência para Situações de Seca, que era precisamente um favorecimento na distribuição de água às culturas permanentes. De seguida a mesma governante, por via da DGADR, avançou para a suspensão da direcção da ABM, acabando por substituir a mesma por uma “comissão administrativa”, nomeada e não eleita, que integra o empresário Filipe de Botton, beneficiário da água que agora vai distribuir e cuja ambição é ser líder europeu na produção de mirtilo, uma situação que no mínimo configura um claro e grave conflito de interesses. Não foi difícil adivinhar que a primeira medida da nova comissão administrativa foi aumentar por duas vezes a dotação anual de água no AHM, já que a empresa Logofruits de Botton já tinha esgotado a quantidade de água que lhe cabia em 2023.

7) Não suficiente, tornou-se do conhecimento público que Joel Vasconcelos, ex-chefe de gabinete da Ministra da Agricultura e Alimentação e do Secretário de Estado da Agricultura, com longa carreira no Governo, e com quem o Juntos pelo Sudoeste reuniu em Abril passado para partilhar as suas preocupações ambientais e pedir a reposição de um equilíbrio no Sudoeste Alentejano, assumiu recentemente o cargo de director geral da organização de produtores Lusomorango, o braço comercial do gigante dos frutos vermelhos Driscoll’s. O movimento de cidadãos questionou, em carta aberta ao gabinete de António Costa, esta “transferência” à luz da lei: “os titulares de cargos políticos de natureza executiva não podem exercer, pelo período de três anos contado a partir da data da cessação do respetivo mandato, funções em empresas privadas que prossigam atividades no sector por eles diretamente tutelado” - mas, mais importante, à luz da ética republicana que o poder político tanto diz privilegiar.

O movimento Juntos pelo Sudoeste tem vindo a alertar desde o final de 2019 sobre o avanço insano da actividade agrícola intensiva contra a conservação da natureza e biodiversidade, em contraciclo com a crescente escassez de água e com recurso a mão de obra importada massivamente em condições degradantes, num território sensível como é o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, a cuja protecção o Estado português está obrigado por legislação comunitária e nacional. E a questão coloca-se: quem garante, afinal, a defesa do interesse público no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina?

O Juntos pelo Sudoeste defende um desenvolvimento económico da região que respeite escrupulosamente os seus limites ambientais, a sua identidade como território de alto valor ecológico, a sua coesão social, justiça ambiental e solidariedade inter-geracional.

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