A CDU apresenta documento de reflexão que analisa os problemas da situação existente sobre a remodelação do Museu Municipal Dr. José Formosinho em Lagos.
Perante a situação que está criada, é este o momento em que se impõe uma reflexão sobre o Museu Municipal Dr. José Formosinho em Lagos, à luz da visão, projectada no futuro, contida nos conceitos museológicos em que um museu constitui uma narrativa de caracter científico, baseada no rigor, genuinidade e autenticidade, participada pela população cujas vivências e cultura espelha e de que é imanência, além de factor indispensável no processo de desenvolvimento da comunidade a que pertence.
Sabendo-se que as determinantes dum qualquer museu com o seu acervo, são o resultado das influências recíprocas entre a comunidade onde está instalado e os objectivos da vontade que o criou, seria inútil dizer que foram essas as razões que ocasionaram o que o Museu Municipal Dr. José Formosinho é hoje em Lagos, mas a sua observação permite extrair a conclusão que o ponto de partida para pensar sobre este museu, deverá ser a análise crítica da evolução do percurso histórico dessas determinantes e, em simultâneo, o seu cotejo com as referidas actualizadas concepções sobre o papel da museologia na comunidade onde o museu se situa.
O resultado assim obtido deverá ser ainda completado com um diagnóstico fornecido por uma investigação multidisciplinar na cidade e no Concelho de Lagos, indo muito para além de um inventário do acervo encontrado e da situação dos aspectos físicos do edifício existente, ambos evidentemente indispensáveis mas, nesta metodologia de trabalho, úteis apenas quando são vistos integradamente com a teoria da intervenção museológica, em que se incluem a arquitectura e as disciplinas humanistas interventoras na museologia, basicamente antropologia, etnografia e história.
Daqui se retirariam as orientações para a questão central em causa, isto é, o papel do equipamento público Museu Municipal dr. José Formosinho na cidade e no Concelho de Lagos, assim dando execução prática ao princípio teórico da função social da museologia.
Em consequência, coloca-se a pergunta primeira, que antecede todas as outras questões: que museu se pretende para Lagos? A resposta, sem a qual as decisões e o Projecto serão sempre aventuras, constituiria então o objectivo do Programa a estabelecer para um Projecto Integrado para o Museu Municipal dr. José Formosinho.
Na busca de uma resposta consequente, segue-se como necessário neste raciocínio, começar por levar a efeito uma aproximação, em traços largos, mas suficientemente fundamentados e esclarecedores, ao percurso histórico do museu existente e do seu acervo. Vê-se então que as suas géneses remontam a 1924, quando teve lugar o acordo para a igreja de Santo António dos Militares transitar da tutela do Ministério da Guerra para o Ministério da Instrução, o que se veio a concretizar em 1929.
Na sequência deste acordo e sob proposta do dr. José Formosinho, membro da Comissão Municipal de Iniciativa e Turismo, em 1930 a Câmara Municipal de Lagos deliberou criar em Lagos um museu, para albergar todos os valores artísticos e arqueológicos existentes ou que viessem a ser encontrados e nomeou para seu Conservador, sem remuneração, sem instalações nem quadro de pessoal, o mesmo dr. José dos Santos Pimenta Formosinho, notário público em Lagos, que aceitou o cargo nessas condições.
Assim, o cidadão lacobrigense José Formosinho, preocupado com a protecção, salvaguarda e divulgação dos valores culturais e históricos, à época pouco e mal atendidos, e que era conhecido comoum respeitado investigador e estudioso autodidacta altamente qualificado em arqueologia, se viu investido ainda da qualidade de museólogo, para a qual não tinha qualquer preparação, apenas dispunha de dedicação e muita.
José Formosinho deu então imediato início ao museu, com a criação da Secção de Arte Sacra, que instalou na sacristia da igreja de Santo António que também passou ao âmbito do museu, igualmente alargado para a dependência, contígua à igreja, que fora usada para ensaios da banda militar e passava a ser a entrada do museu. Foi nessa época que o sempre atento José Formosinho conseguiu, para valorizar a entrada do museu (1), que o ministro das Obras Públicas autorizasse a transferência para ali do portal renascentista (2) da antiga Ermida do Espírito Santo, depois Igreja do Compromisso Marítimo de Lagos, que fora retirado para permitir a passagem das viaturas dos Bombeiros Voluntários de Lagos, a quem a antiga ermida fora entregue para quartel (3).
Deu-se então uma muito peculiar situação cujos efeitos decisivos na vida do museu são uma lição a reter para as decisões a tomar hoje. Foi que, para apoio às suas investigações e recolhas arqueológicas para o museu que se ia instalando, prestigiando e alargando, José Formosinho fez saber a público que receberia para o museu qualquer peça ou vestígio que fosse encontrado e parecesse ter interesse. Isso teve a maior compreensão por parte da população que logo se prontificou a corresponder e, além de na melhor tradição popular local atribuir a José Formosinho a alcunha, cordial e amigável, de Zé dos Cacos, criou o costume de doar ou depositar no museu tudo aquilo que possuísse ou encontrasse a que atribuísse interesse ou qualidade museológica.
José Formosinho tudo agradecia e arranjava forma de expor, com a simples visão de colecionismo que à época era dominante como conceito museológico, o que teve dois efeitos muito significativos para o tema que se está a tratar de pensar o futuro do museu existente.
Um, foi a incoerente heterogeneidade do acervo do museu, com exposição permanente das peças mais variadas e desconexas, desde colecção de numismática a recordações africanas, à cabrinha de seis patas embalsamada e a peças de artesanato expostas com aproximações à etnologia, além de pinturas, tanto de conceituados autores como amadoras ou naifs, tudo misturado com as importantes recolhas arqueológicas entretanto prosseguidas em toda a região por José Formosinho.
O outro efeito, consequente de toda esta mescla de situações e cujo valioso significado social e de cultura comunitária deverá ser uma relevante orientação para o futuro, foi que a população criou familiaridade com o museu, por nele participar e nele se sentir representada, resultando que os munícipes de Lagos conheciam e tornou-se um hábito visitarem ou mostrarem o museu a que chamavam seu, porque o museu era de facto pertença e componente da vida quotidiana da comunidade e sua atenção permanente.
Cabe aqui fazer referência ao entusiasmo dedicado ao museu pelo guarda e vigilante Carlos Dias dos Vales, que lhe valeu o respeito local e a justiça da alcunha de Carlos do museu, nome com que era conhecido em Lagos. De origens modestas na Vila do Bispo, desde que começou a trabalhar no museu que Carlos do museu absorvia atentamente as detalhadas informações e sábias explicações em que José Formosinho era prolixo sobre o acervo do museu. Acumulando os saberes assim adquiridos aos seus próprios estudos autodidatas, Carlos do museu soube desenvolver os seus parcos conhecimentos originais, conseguindo ser um conhecedor guia, informador e intérprete em várias línguas, para visitantes do museu, além de colaborador de José Formosinho na leitura e interpretação de antigos textos e documentos (4).
Todavia, com o falecimento de José Formosinho em 1960, deu-se o arrastamento no tempo, que se prolongou por décadas, de indefinições acerca da propriedade e dos direitos sobre o espólio documental e expositivo do fundador do museu, assim como sobre competência para tomar decisões no museu e no acervo em geral.
Como resultado, o museu perdeu a sua dinâmica, fossilizou-se na forma e enquistou-se na função, passou a ser uma estática mostra de coleccionismo para turista olhar, beneficiando, para o efeito, de pontuais melhorias nos meios de exposição e assim chegou até agora, desactualizado nos conceitos museológicos. Paralela e inevitavelmente, diluiu-se o prestígio, a presença e a adesão que o museu tinha junto da população, de que se desligou e o museu entrou numa fase de imobilismo conceptual, mal disfarçado pelas beneficiações expositivas.
De toda a maneira, destaca-se deste historial a verificação de que o museu existente e o seu acervo, não resultaram de uma vontade ou saber museológico, nem de duma intenção programada. São a exposição de uma colecção de coisas e objectos avulso, mais ou menos interessantes ou curiosos, mas resultante do puro acaso que ali as reuniu.
Como imediata e evidente conclusão a que esta análise conduz, fica clara a necessidade de levar a cabo a remodelação do Museu Municipal dr. José Formosinho em moldes que contrariem a inércia e a preguiça de pensar a que o museu tem estado sujeito nos seus tempos mais recentes, repensando-lhe os conceitos de forma a posicionar o museu como factor de desenvolvimento não só nos planos social e de promoção cultural na cidade e no Concelho, como pelos significativos efeitos na economia local dados pela maior atractividade que lhes fornece.
A remodelação terá, portanto, que ser o reinventar de todo o museu, não se podendo limitar a uma simples rearrumação e reordenamento dos conteúdos existentes ou de outros futuros, colocados agora em salas e
locais reparados ou reconstruídos.
Uma questão fundamental para permitir este novo caminho para o museu, será o abandono do sistema de decisões casuísticas e não estudadas, como o facto consumado de destinar o sector da arqueologia a um núcleo específico a construir em local arbitrariamente escolhido, sem nada da perspectiva de um museu programado.
Bem pelo contrário e como útil conclusão genérica para decidir sobre a sua remodelação, surge indubitável que o Museu Municipal dr. José Formosinho está num momento que não se pode perder, com as condições para que venha a dispor, pela primeira vez na sua quási secular vida, de um Programa Museológico Integrado coerente, narrativo e informativo, abarcando a vastidão da riquíssima história de Lagos, a sua cultura e a vivência das suas gentes.
A remodelação do Museu Municipal dr. José Formosinho será assim o prosseguimento do espírito inventivo e inovador do seu fundador, agora adaptado no sentido da sua actualização como museu polinucleado tematicamente, com um Polo Central que organize os polos temáticos e oriente as suas visitas e o seu conhecimento.
Outra óbvia conclusão que também se retira, é que a remodelação deverá ter, como guião metodológico, a recuperação da dinâmica e riqueza social e cultural da participação e intensa adesão por parte da população do Concelho, como recentemente aconteceu em Odiáxere com a doação, por parte de um cidadão, de acervo dedicado à agricultura para a criação de um núcleo museológico local.
Este tipo de iniciativas e de vontade, tendo caracterizado o processo original de formação do Museu Municipal dr. José Formosinho e do seu acervo, deverá manter todo o seu significado de base do conceito de hoje da função social da museologia.
Em relação às obras e acções em curso de remodelação e ampliação do museu muito há a comentar, pois que os seus princípios e critérios estão longe dos caminhos organizados e programados reflectidos nas
conclusões atingidas nesta reflexão.
De facto, nos 5 anos que já se contam desde o início desde processo sem que a comunidade local e a sua massa crítica tenham de alguma maneira sido informadas ou chamadas a exercer o seu direito de cidadania acerca do museu que se pretende para a cidade e o Concelho, o que se encontra é uma série de contradições e hesitações nas decisões que têm sido tomadas.
Sem se ser exaustivo, e considerando que um projecto é passível de alterações, encontra-se, nos elementos fornecidos pela Câmara Municipal, que:
. o projecto adjudicado em 2015 (5) era «Remodelação e Ampliação do Museu Municipal dr. José Formosinho» abrangendo o actual museu (estudo prévio) e o edifício da antiga cadeia (6) descaracterizado com as obras para instalar a esquadra da PSP (projecto de execução);
. em 2017, o «projecto de execução Remodelação do Museu Municipal dr. José Formosinho», ignora o acervo do museu mas aventurou-se em terrenos que não lhe competiam incluindo, sem a explicar, uma
distribuição do acervo existente por salas (7);
. este projecto não contemplava mexer no portal da entrada do museu, mas este foi retirado e reconstruído no interior, comprometendo a futura museologia;
. a empreitada geral do museu (8) foi, em 08.02.2018, de 691.525,06 euros, com o prazo de execução de 240 dias e sofreu 3 contratos adicionais (9, 10 e 11) sobre trabalhos a mais, erros e omissões de
projecto e reposição do equilíbrio financeiro, resultando no custo total de obra, até hoje, de 1.018.638,08 euros, mais os 46.220,00 euros da mudança do portal de entrada e aumentando ainda o prazo para
a obra em mais 259 dias;
. na informação CML dada a público (12) em Agosto de 2017, anunciava-se o encerramento do museu para obras;
. a informação CML de Janeiro de 2018 (13), anunciava o início das obras e a reabertura do museu em Janeiro de 2019;
. em 2017, concurso para o projecto de alteração do núcleo arqueológico, com novo programa e abrangendo o edifício e logradouro contíguos adquiridos para o efeito, mas em Abril de 2020 o projecto
ainda se encontrava em execução;
. em 2020, novo concurso, agora para o projecto de uma sala de exposições temporárias no logradouro do núcleo museológico.
No entanto, destacam-se algumas questões programáticas determinadas pelas conclusões desta reflexão e que serão fundamentais para uma programação estruturada da remodelação do museu, prevendo, se
necessária, a execução por fases, a saber:
. organizar um esquema geral concelhio para o museu, sob o princípio da complementaridade e da descentralização dos núcleos temáticos na cidade e no Concelho, definindo os seus objectivos programáticos e as respectivas localizações, tudo elaborado com informação pública e apelo à população para participar e para colaborar no alargamento dos acervos;
. corrigir a incompreensível não inclusão no projecto de remodelação do Museu Municipal dr. José Formosinho dos espaços interiores e exteriores do edifício que foi adquirido na década de 1980 para
ampliação do museu (14) e actualmente ocupado pelo Centro de Documentação do museu, que deverá ser vitalizado com ligação a um sector educativo e desenvolvido na sua superior qualidade de
componente de natureza científica indissociável do museu e ao dispor de estudiosos e investigadores, agregando a função de divulgar e promover junto de visitantes e para o exterior, as edições,
publicações, estudos e investigações e recordações do museu;
. cumprir a imperiosa necessidade, reclamada pelo respeito pelo património histórico genuíno e ditada pelos princípios da museologia «in situ», de corrigir o indefensável contrasenso que é o uso do portal renascentista como se fosse uma peça de interior e proceder à sua imediata devolução ao lugar de origem, num acto exemplar para o enriquecimento e a verdade no maltratado património histórico e de
memória de Lagos;
. recuperar na sua integridade o pátio do museu, cuja qualidade ambiental, de escala e de função, foi destruída com a impensada construção dos sanitários na década de 1960.
. criar as condições para a participação activa da população na definição do museu que a cidade e Concelho de Lagos pretendem.
Esta reflexão é um contributo da CDU para a discussão mais geral que se impõe na definição do «Museu que se pretende para Lagos».