Artigo de opinião de Duarte Amaro, Vice-Presidente da JSD/Algarve
É estranho ver gente inteligente a reagir com surpresa e sobressalto à mais recente recusa do Primeiro-Ministro em demitir (ou aceitar a demissão, o que vai dar à mesma coisa) um seu Ministro. António Costa, que demorou em exonerar Eduardo Cabrita, que demorou em exonerar Pedro Nuno Santos, vem agora recusar-se a exonerar João Galamba. E quem vê este circo, por falta de melhor entretenimento ou de pior política, surpreende-se da mesma forma cada vez que o padrão se repete e António Costa não deixa cair os seus, mesmo quando ocupam precisamente os mesmos gabinetes.
Uma interpretação possível é a ideia de que ao manter ministros ou secretários de estado rodeados de escândalo no seu Governo, o Primeiro-Ministro dispõe dum pararaios, um acessório útil para quem navega tormentas políticas. No imediato, as inúmeras histórias de distintos doutores, metidos num fez-ou-não-fez que se arrasta pelos telejornais enquanto os tribunais não atendem aos fregueses, mantém os comentadores em corrupio e distrai o eleitor. Tanto melhor quando, como recentemente, a novela mete espiões, agressões, e assessores em fúria de bicicleta em punho. Quando alguém se lembra de que todas estas personagens têm patrão, pede-se ao Senhor PrimeiroMinistro que por favor demita quem tão gentilmente tem distraído a nação com a sua tragicomédia. Como algumas destas personagens ainda estão a aprender as falas, e a oferta de figuras que não se importem com a chatice de lidar com a imprensa pelo privilégio de ter andado no governo é limitada, mesmo no PS, António Costa lá vai esticando a corda até, nos seus termos, e não nos da opinião pública, assinar a dispensa de quem assim vê concluídos os seus 15 minutos – ou 15 dias – de fama. Num ciclo vicioso, escândalo segue-se a escândalo, distraindo os portugueses do imediatamente anterior. E assim o debate, em vez da nacionalização ou privatização da TAP, foca-se na comissão de inquérito à TAP – no assessor em vez do essencial.
Mas há outra explicação, compatível com esta primeira. O Primeiro-Ministro compreende, como compreendem todos os dirigentes do PS, que um cargo é um bem transacionável, e que se tem de dar para receber. A sua liderança do PS (e, por consequência, do país) não é um facto imutável e inato, mas o resultado duma estratégia muito bem-sucedida que equilibra cliques internas no Governo. Ao segurar quem a ética republicana há muito condenou, o Primeiro-Ministro sinaliza a sua competência em dividir os despojos do poder e cimenta a sua posição no PS.
Numa democracia parlamentar, o Governo depende duma maioria parlamentar (explícita ou tácita, constante ou ad hoc). Quando um partido detém a maioria dos assentos parlamentares, o Governo depende do controlo do respetivo partido. A inevitável conclusão é que, enquanto o Primeiro-Ministro liderar um partido unido e coeso, outros atores políticos, mesmo o Presidente da República, serão incapazes de fazer valer a sua oposição. Só com isto em mente é possível compreender a praticamente inevitável decisão de António Costa, por muito que o hiperbólico comentário político veja numa reação previsível e ditada pela sua estrutura de apoio uma manobra de génio (o ouvinte ou espetador atento já terá decerto perdido a conta às vezes que ouviu o Primeiro-Ministro descrito como um ‘animal político’).
Surpreendente seria o Primeiro-Ministro fraturar a sua base de apoio interna ao aceitar a demissão do Ministro das Infraestruturas. Mantendo João Galamba, entre a indignação cega da oposição (que há muito abandonou a ideia de fazer mais que ir a reboque da catadupa de casos), António Costa mantém a união do PS.
Com uma esquerda moribunda, uma direita fraturada, e um centro não-existente, o Presidente da República hesita em dissolver a Assembleia da República. Encurralado pelo Primeiro-Ministro, Marcelo Rebelo de Sousa ou arrisca eleições antecipadas que podem dar nova vitória ao PS, se Costa agitar de novo o papão da extrema-direita, ou aceita que o seu bluff tenha sido exposto. A única estratégia de Belém seria dividir o PS, oferecendo São Bento a um dos mais prematuros pupilos do Largo do Rato. Como em qualquer sistema maioritário, só um partido em rebelião aberta consegue correr com um Primeiro-Ministro em funções. Na ausência de prognósticos eleitorais mais favoráveis, resta a Marcelo Rebelo de Sousa a discórdia interna. Como esta informação não escapa decerto a António Costa, torna-se crucial, com Pedro Nuno Santos já fora do Governo, segurar João Galamba. É irrelevante debater se Ministro das Infraestruturas submeteu um pedido que sabia vão, ou se realmente desejou abandonar funções governativas; a questão que se impõe é se os Jovens Turcos aproveitam o momento de inimizade entre Belém e São Bento ou esperam, na sombra do Primeiro-Ministro.
Ao mesmo tempo, o paraquedas europeu de António Costa tarda em abrir. Os seus correligionários europeus perdem em Helsínquia e parecem estar prestes a perder em Espanha, onde as eleições regionais deste mês darão indicação do presumível resultado das legislativas a ter lugar até dezembro. Se assim for, Costa seria em 2024 um de quatro líderes socialistas, a par de Malta, Dinamarca, e Alemanha, partindo em desvantagem para uma hipotética liderança do Conselho Europeu, e seria um improvável candidato a Presidente da Comissão. Sentirá o Primeiro-Ministro que, oito anos depois da maior golpada política da nossa democracia, não lhe restam alternativas senão São Bento, enquanto se intensifica a guerra de bastidores pela sua sucessão?
Face à relativa constância da opinião pública e à hesitação da oposição, quer o Presidente da República quer o Primeiro-Ministro saberão que, no combate agora inevitável que os opõe, o ator central será o Partido Socialista. E Marcelo Rebelo de Sousa não esgotará as suas opções com uma dissolução da Assembleia da República antes de jogar todas as suas cartas.