Artigo de Demosthenes Mesquita, publicado na edição de Julho do Jornal Correio de Lagos impresso.
Estes dias de confinamento ditados pelo vírus “COVID 19” levaram-me a meditar em recordações antigas respeitantes à vivência social na década compreendida entre os anos 40/50 do século passado, na sociedade Lacobrigense.
A vida dos Lacobrigenses estava, digamos, como que compartimentada, cada qual nos seus extratos sociais: O topo constituído pelos Ricos e poderosos (patrões, armadores, industriais de conservas, proprietários, etc.); no escalão seguinte encontravam-se os comerciantes, também eles patrões, industriais de menor poder e outros também de elevada posição social. Finalmente o escalão mais numeroso, era constituído por grande parte do universo Lacobrigense: Operários, pescadores, agricultores e toda uma população que vivia o seu dia a dia dependente do peixe pescado ou conservado e da restante industria que havia na cidade para além da conserveira, corticeira e cerâmica.
Curiosamente, esta estratificação de classes, porque era disso que se tratava, começava nos bancos da escola.
Havia em Lagos, ao tempo, uma escola particular cujo proprietário era o Senhor Professor Taquelim. Funcionava num edifício situado no início da rua Conselheiro Joaquim Machado, vulgo Rua de S. Sebastião. Esta escola de ensino particular, lecionava até à 4ª classe e era frequentada pelos meninos das classes mais abastadas. Na mesma rua, um pouco mais acima, existia também um colégio particular que lecionava até ao 5ª ano, igualmente para classe alta.
E os outros?
Todos frequentavam o ensino primário oficial nas escolas que o regime de Salazar “plantou” por esse país fora, para que ao menos todos frequentassem a instrução primária, vulgo 4ª classe, ao que se sabe não resultou, pois, o analfabetismo imperou nas classes baixas durante muitos anos.
E já na escola primária havia distinção de classes, assim distribuídas: Meninos de pais com posses, chegavam à 4ª classe. Ao fim do dia de aulas frequentavam explicações extra para se habilitarem ao exame de admissão ao liceu sendo estes os futuros doutores, engenheiros, etc.. Os meninos de classe média e média baixa, findo o ensino primário tinham como destino a Escola Industrial Vitorino Damásio, onde mesmo sem qualquer aptidão para tal, frequentavam o curso de carpinteiro marceneiro. Os restantes meninos, tinham todos um destino comum: A pesca, os diversos ofícios, a agricultura, etc.
No que diz respeito às meninas, a segregação também existia. As meninas das classes mais abastadas frequentavam a escola até à 4ª classe e muitas passavam para o liceu, embora dificilmente seguissem estudos superiores. As meninas das classes média e média baixa frequentavam a Escola Industrial, onde faziam um curso de costura e bordados.
No início da década de 50, a “Escola Industrial Vitorino Damásio”, passa a denominar-se “Escola Industrial e Comercial de Lagos”, passando a lecionar um “Curso Complementar de Aprendizagem de Comércio, que funcionava numa espécie de horário pós-laboral, a partir das 17,00 horas.
As meninas que não frequentavam a Escola Comercial, distribuíam-se pelas salas de costura, que existiam em grande quantidade na cidade, pois o pronto a vestir não tinha ainda feito a sua aparição, pelos trabalhos domésticos, fábricas de conserva, etc.
Algumas, fruto das habilitações obtidas, concorriam a empregos nos balcões do CTT e também à Escola do Magistério Primário, onde adquiriam habilitação para o exercício da profissão de Professoras do Ensino Primário.
Nessa época, apenas o extinto Banco Nacional Ultramarino fazia concursos de admissão a que concorriam muitos jovens com capacidade para empregados de escritório, comércio, etc.
A estratificação da sociedade Lacobrigense, não parava na vida adulta. Os Lacobrigenses frequentavam os seus lugares nas sociedades recreativas conforme o seu estatuto social, espalhando-se pelas diversas coletividades da cidade: Os ricos e poderosos na Sociedade Filarmónica Lacobrigense, conhecida como Sociedade dos Ricos e nada tendo a ver com a nossa atual Sociedade Filarmónica Lacobrigense 1º de Maio, o Grémio Lacobrigense era frequentado pela classe seguinte: Os pequenos industriais, comerciantes, proprietários agrícolas, altos funcionários, etc. Qualquer destas coletividades já não existe nos nossos dias, sendo que no edifício ocupado pelo “Clube dos Ricos” funciona hoje o Centro Cultural de Lagos. O Grémio, cujo edifício ainda hoje existe numa rua à época conhecida por “Rua da Meia Laranja”, de seu nome “Rua da Estrema”, escrita como está na placa toponímica, está abandonado e em ruinas.
A classe operária, operária especializada, pescadores, empregados do comércio, agricultores, costureiras, empregadas domésticas, etc, distribuíam-se pelas coletividades da cidade: Sport Lagos e Benfica, Marítimo, Esperança, Clube Artístico Lacobrigense mais conhecido como “Os Artistas” e o Cube Metalúrgico.
Destas coletividades, apenas os “Artistas” mantêm uma atividade regular. As restantes pararam a sua aticidade cultural, tendo o ”Marítimo” sido extinto depois de tantos e bons serviços prestados à cultura, através do seu Rancho Folclórico.
De realçar a atividade do Clube Artístico Lacobrigense, com a organização das suas récitas e outros espetáculos onde despontaram para a canção nacional as nossas conterrâneas Júlia Barroso, que já não está entre nós e Maria de Fátima Bravo.
Nos anos 40 do seculo passado, ficaram na memória de todos, as celebres marchas populares organizadas pelo Sport Lagos e Lisboa, Marítimo e Esperança, sempre com a colaboração da Filarmónica, que ainda mantém no seu arquivo as partituras dessas marchas.
Inesquecíveis são também os famosos bailes de carnaval, que em algumas coletividades duravam até de manhã, especialmente o que tinha início na noite do dia de Entrudo e só terminava na manhã da Quarta Feira de Cinzas.
Depois, na Quarta Feira de Cinzas, seguiam-se passeios à mata de Barão de São João, para colher acácias.
A televisão fez a sua aparição no início dos anos 50. Até aí, eram os bailes, as récitas por amadores locais e o cinema, que davam aos Lacobrigenses o seu enriquecimento cultural, sem esquecer o ensino da música a centenas de rapazes, promovido pela Sociedade Filarmónica Lacobrigense 1º de Maio. Da aprendizagem de música nas suas estantes, saíram músicos profissionais, civis e militares, que muito dignificaram a cidade e trouxeram essa força cultural até aos nossos dias.
Funcionou em Lagos, até ao ano de 1945/46, não posso precisar, uma sala de cinema, o Cine-Teatro Ideal, propriedade do empresário Simões Netto.
Dava sessões à Quinta Feira e ao Domingo. Recordo-me da figura do Sr. Simões e de um dos seus funcionários, porteiro, homem de elevada estatura que era conhecido por ”Chico Galinha”, que impunha uma certa ordem à entrada da sala.
A sala de cinema tinha camarotes, plateia e num corredor à direita da sala, situava-se a geral, mais conhecida por “piolhinho”.
A programação consistia em filmes próprios da época e também em filmes de aventuras tão do agrado da “malta” e que à época fizeram furor: 12 episódios e 25 partes, exibidos na mesma noite.
Em 1945/46, também não posso precisar o ano, foi inaugurado o Cine-Teatro Império, um belo e imponente edifício que ainda hoje existe e funciona como cinema e centro comercial. As suas valências, para a época, eram extraordinárias: tinha uma lotação de cerca de mil lugares, entre frizas, balcão, plateia e geral, salão para bailes e concertos (os celebres concertos Pró-Arte) bem como aptidão para teatro, onde excelentes espetáculos teatrais se realizaram.
A título de curiosidade, recordo que o filme inaugural do cinema Império, foi o Português “Camões”.
O Cine-Teatro Império foi um sucesso, tendo o Cine-Teatro Ideal sido demolido para dar lugar a uma unidade hoteleira, mesmo ao lado do Cinema Império.
E quanto ao Desporto?
Existiam na cidade 3 clubes desportivos, essencialmente dedicados à prática do futebol sénior. Eram o Esperança Futebol Clube, o Sport Lisboa e Lagos e o Clube de Futebol Marítimo “Os Lacobrigenses”, filiais respetivamente do Sporting, Benfica e Belenenses.
As instalações para a prática do desporto, nomeadamente do futebol, eram praticamente inexistentes, limitando-se a um retângulo de terra batida, situado no Rossio da Trindade, com marcações e balizas e sem nada mais.
Os atletas equipavam-se nas sedes dos respetivos clubes e iam a pé para o campo de jogos. Findo estes regressavam às respetivas sedes, a fim de tomarem banho, provavelmente de água fria.
As rivalidades eram grandes e os adeptos distribuíam-se à volta do retângulo da seguinte forma: os do Esperança, ocupavam o lado nascente, o lado poente sul era ocupado pelos do Sport e o lado Poente Norte era ocupado pelos adeptos do Marítimo.
Destes clubes, saíram alguns jogadores para outros de maior dimensão. Recordo o nome de dois dos jogadores que mais se evidenciaram: Manuel Afonso, conhecido por “Manuel Preto”, guarda redes que saiu para o Portimonense e Fernando Cabrita, que saiu para o Olhanense e daí para outros clubes tendo chegado à Seleção Nacional.
Bons tempos e boas rivalidades, em que jogadores e público, após os jogos desciam juntos as Ruas 5 de Outubro, S. José, ou Estrada da Trindade, em direção à cidade.
Avançando alguns anos, em 1955 entro para o Exercito e em 1959 início uma época de intermitência na minha presença na cidade de Lagos. Em resultado dessa intermitência, perdi um pouco a noção da evolução da sociedade Lacobrigense.
Em 1961, quando regresso da India, encontro a cidade mudada pela construção da Avenida dos Descobrimentos e constato outro facto que viria a mudar completamente os hábitos e os costumes da sociedade Lacobrigense: O turismo, que descobriu e deu a conhecer além-fronteiras, uma das mais belas praias da costa Portuguesa: a Meia Praia, que mercê da construção do canal da Avenida, ficou muito mais segura para os banhistas.
O seguimento da minha carreira militar, obrigou-me a ausências prolongadas da minha cidade, pelo que deixo a outro conterrâneo a análise dos anos seguintes, que nos conduziram até à revolução dos cravos.
Obrigado pela Vossa atenção e paciência.