Artigo de Opinião de Paulo Castro Chaves, especialista em Medicina Interna na Unidade de AVC do Centro Hospitalar e Universitário São João e Professor Associado Convidado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
A 31 de Março comemora-se o Dia Nacional do Doente com Acidente Vascular Cerebral. Este dia foi instituído no ano de 2003, com o objectivo de sensibilizar a população para a realidade da doença em Portugal e promover a melhoria das prácticas de saúde, incentivando uma dinâmica que conduza a novas atitudes.
Ao contrário de outras patologias que se insinuam de forma quase subtil e progressiva, o Acidente Vascular Cerebral (AVC) tem uma apresentação aguda e não raras vezes brutal. As formas de apresentação podem ser múltiplas, mas são na maior parte das circunstâncias súbitas. Tudo está bem e, de repente, tudo se modifica. Para quem avalia, trata e acompanha diariamente doentes acometidos por esta patologia, são inúmeras as histórias de avós, pais, filhos ou amigos que subitamente, do nada, sem aviso prévio vêm as suas vidas profunda e radicalmente afectadas. As histórias são bem concretas e reais e todos sabemos que a esses momentos iniciais se vão seguir muitas vezes meses de recuperação lenta e progressiva que poderão ou não restabelecer a forma de estar anterior. Mas, apesar de tudo, há sinais de esperança porque muito tem sido feito a vários níveis nos últimos anos para alterar esta realidade, desde a existência de terapêuticas de fase aguda cada vez mais eficientes, e de aplicação mais generalizável, até medidas de recuperação e prevenção mais capazes.
Os sinais de alerta são relactivamente simples e conhecidos por FAST que significa face, arm, speech and time, ou seja, boca ao lado, falta de força num braço, alteração da fala e tempo. Perante estes sinais, que são fáceis de serem reconhecidos por qualquer pessoa, a reacção imediata deve ser contactar os serviços de emergência pré hospitalar para que o caso possa ser encaminhado atempadamente para o local mais adequado. Embora com limitações, nomeadamente para quem vive fora dos grandes centros urbanos (aqui as assimetrias regionais são também importantes), existe actualmente uma rede de referenciação composta por Hospitais de primeira e de segunda linha capazes de fazer o diagnóstico e tratamento atempado.
E aqui a palavra tempo é crucial: tempo é cérebro! As intervenções terapêuticas agudas capazes de modificar a história natural desta doença terrível e assustadora, porque incapacitante e geradora de grande sofrimento para o próprio e seus familiares e amigos, dependem criticamente do tempo. O princípio é restabelecer a circulação do sangue na região cerebral afectada antes que da obstrução vascular resulte lesão neuronal irreversível e, por isso, perda de função cerebral e incapacidade. Por cada minuto que passa sem restabelecimento da circulação são perdidos 1,9 milhões de células cerebrais, correspondentes a um envelhecimento cerebral de 3,1 semanas, e por cada hora perdem-se 120 milhões de neurónios e há um envelhecimento de 3,6 anos. Por isso, lutamos em cada momento e em cada caso contra um relógio que não para. Por isso, a janela temporal para uma actuação eficaz é muito curta, de poucas horas. Por isso, para conseguirmos administrar atempadamente os tratamentos que sabemos serem eficazes para contrariar esta cascata de eventos é fundamental que todas as peças do sistema estejam bem oleadas e conectadas. É a chamada cadeia de sobrevivência do AVC composta por vários elos interligados: reconhecimento dos sintomas e activação dos serviços de emergência; resposta adequada da emergência pré-hospitalar; transporte e pré-notificação do centro de AVC; tratamento rápido e de acordo com as recomendações internacionais e estado da arte; e qualidade dos cuidados pós-AVC. Infelizmente, o elo mais fraco desta cadeia continua a ser o primeiro, porque muitas vezes os sintomas não são reconhecidos ou, pura e simplesmente, se fica à espera “a ver se passa”. Mas a verdade é que a tempestade não passa e, por isso, nunca é demais chamar a atenção para estes sinais de alerta porque, se o doente não chegar a tempo, o seu tratamento pode ficar seriamente comprometido.
Contudo, é preciso sublinhar que todos os elos desta cadeia são importantes e, embora aqui também tenhamos sinais de esperança, todos nós que estamos envolvidos diariamente nesta luta contra o AVC sabemos que ainda muito há por fazer e optimizar. Antes de mais, é importante continuar o acompanhamento para além da fase aguda. É fundamental garantir uma continuação fluída dos cuidados de reabilitação após o internamento hospitalar de forma a evitar quebras e interrupções do processo de reabilitação. Essas descontinuidades são muitas vezes causa de retrocessos importantes e fazem com que muito do investimento efectuado na fase aguda, com terapêuticas e cuidados que custam a todos nós milhares de euros por doente, se perca. É importante focar nas necessidades e especificidades de cada caso e personalizar todo o tratamento de forma a ir ao encontro da individualidade de cada doente. É crucial a implementação de medidas preventivas para que antes de mais o AVC nunca ocorra e, caso aconteça, nunca se repita. De facto, as medidas preventivas são essenciais e, embora estejamos a falar de uma única doença, a verdade é que a sua prevenção é multidisciplinar e acaba por tocar inúmeros aspetos como a promoção de hábitos de vida saudável, a redução do consumo de sal e álcool, a prática de actividade física, a luta anti-tabágica, a redução da obesidade e o controlo de factores de risco como a hipertensão arterial, diabetes mellitus ou dislipidemia, entre outros. Tudo isto requer uma intervenção abrangente e multifocal de forma a maximizar os ganhos em saúde.
Todos sabemos que o AVC continua a ser uma das causas mais importantes de morte e incapacidade em Portugal e na Europa e que, nomeadamente fruto do envelhecimento populacional, se nada fizermos para optimizar e melhorar esta cadeia de sobrevivência os números poderão piorar significativamente nos próximos anos. Felizmente, temos hoje a evidência clara de que o AVC é altamente prevenível e tratável e existe, por isso, potencial para reduzir drasticamente a sobrecarga de doença e as suas consequências a longo prazo. Tal como preconizado pelas mais recentes recomendações da European Stroke Organization (ESO), esta realidade requer a acção conjunta de entidades como o Ministério da Saúde e outros órgãos governamentais, como a Direcção Geral de Saúde, bem como organizações científicas, organizações de doentes, profissionais de saúde, investigadores e indústria farmacêutica. E os alvos propostos pela ESO até 2030 para os países europeus são bem claros e ambiciosos: (1) redução do número absoluto de AVC em 10%; (2) tratar 90% ou mais dos casos de AVC em Unidades dedicadas de AVC; (3) elaboração de planos nacionais para o AVC abrangendo toda a cadeia de sobrevivência desde a prevenção primária até à vida pósAVC; e (4) implementar de forma completa estratégias nacionais para intervenções de saúde pública que promovam e facilitem estilos de vida saudáveis e reduzam factores ambientais, socioeconómicos e educacionais associados à ocorrência de AVC.
Os desafios são imensos, mas não intransponíveis. As dificuldades do dia-a-dia são inumeráveis, mas não inultrapassáveis. Os meios são muitas vezes escassos, mas a dedicação e empenho dos profissionais de saúde são insuperáveis. O caminho é longo e muitas vezes tortuoso, mas a colaboração de todos é fundamental. Acima de tudo há sinais de esperança para os nossos doentes!