Artigo de Artur Vieira de Jesus, in Revista Nova Costa de Oiro (https://www.novacostadeoiro.com/)
“…o nosso paiz, perante epidemias, está como o desgraçado, atormentado por doença subita, que se vê sem medico e sem botica.” (Ricardo Jorge – 1858-1939)
Os últimos dias que temos vivido têm constituído um verdadeiro turbilhão emocional de intranquilidade, dúvidas, verdades, meias-verdades, rumores e boatos (muitas vezes infundados) e que passam a ser aceites como a realidade. Subitamente, a nossa sociedade apercebeu-se que a realidade do ameaçador vírus Covid 19 já não estava no distante Extremo-Oriente, na Península Itálica ou nos ecrãs televisivos. Tornou-se uma ameaça presente e próxima no nosso país, sobretudo na sua zona norte.
Aproveitámos esta ocasião para relembrar um importante período da História da Saúde Pública em Portugal e, ao longo das próximas linhas, recordaremos o que aconteceu, quando ocorreu, como se desenvolveu e que lições práticas podemos retirar de um caso bastante mais grave e aplicar no contexto da nossa realidade presentemente vivida.
No dia 4 de Julho de 1899, o médico municipal do Porto, Dr. Ricardo Jorge teve conhecimento de alguns falecimentos que tinham ocorrido na Rua da Fonte Taurina. Com o interesse e agudeza que o caracterizaram, o higienista foi célere no diagnóstico do problema e logo se apercebeu da gravidade da situação: tratava-se de um surto de Peste Bubónica (a conhecida Peste Negra).
Ricardo Jorge não se intimidou perante a dimensão da ameaça. Com energia, determinação e coragem entregou-se à tarefa de combater o terrível problema que chegara à cidade do Porto, proveniente da longínqua China. O seu esforço maior e o das autoridades competentes centrou-se em procurar impedir que a peste se alastrasse de forma incontrolável, através do isolamento do Porto, dos doentes e dos focos de infecção.
No dia 24 de Agosto, foi implementado um Cordão Sanitário em torno da cidade, um cerco militar levado a cabo por 2500 homens, composto por forças de Infantaria (de Viana do Castelo e de Guimarães) e de Cavalaria (de Chaves e de Aveiro).
Complementarmente, o reputado médico implementou rigorosas medidas de obrigatoriedade da higiene pessoal e de ataque a ratos, pulgas e gatos (agentes propagadores do flagelo). Tal deu origem a verdadeiras caças a estes animais por parte da pequenada, sendo o serviço recompensado: sabemos, por exemplo, que os ratos de grandes dimensões entregues numa esquadra de polícia rendiam 20 réis, enquanto os pequenos rendiam 10.
Proibiram-se algumas actividades de lazer, festejos, aglomerações populares e implementaram-se inspecções médicas domiciliárias, ocorreram operações de desinfecção e limpeza de espaços, queimas de casas e de roupas infectadas e foram implementados isolamentos e quarentenas.
Infelizmente, apesar de todos os esforços para a sua consciencialização em relação ao perigo em que se encontrava, uma parte significativa da população e dos jornais portuenses reagiu violentamente contra as medidas implementadas. Foram levados a cabo comícios públicos e ferozes manifestações de desagrado por parte dos comerciantes, houve desordens diversas, tumultos populares e uma campanha de falsidades, que procurou denegrir todo o esforço para debelar o gravíssimo problema.
Apesar de natural do Porto e de contar com o apoio da classe médica local, Ricardo Jorge, desiludido com a agressividade dos ataques que lhe foram dirigidos, acabou por pedir a sua transferência para Lisboa.
A 22 de Dezembro, foi levantado o cerco militar à cidade e no mês seguinte a peste foi considerada extinta (Janeiro de 1900).
Registaram-se 320 casos e ocorreram 132 mortos. O caso mereceu a atenção da comunidade médica internacional e foi utilizada, pela primeira vez, uma máscara facial, criada pelo médico Afonso de Lemos.
Em 1900, Carlos Alberto da Cunha Coelho, num trabalho consagrado a este surto, registou: “Á volta d’um fóco epidemico, as melhores medidas sanitarias a adoptar, são a vigilância sanitária e a desinfecção rigorosamente applicadas. Muitas vezes a opinião publica obriga os governos a prohibir toda a comunicação entre o fóco epidémico e o resto do paiz. Foi o que sucedeu com o Porto.”
Palavras referentes a um caso, sem dúvida, bastante actual, daí o recordarmos nesta breve reflexão. De tudo o que considerámos, ressaltam quatro grandes noções e princípios fundamentais: o Isolamento dos Focos Infecciosos, a Higiene (diária, regular, individual), a Limpeza e Desinfecção dos Espaços (privados e públicos) e o Combate aos Transmissores das Doenças (animais nocivos).
A História não é uma realidade enfadonha, inútil ou desconexa. No estudo do Passado está a chave para a compreensão e para a resolução de muitos dos nossos problemas e realidades quotidianas. É importante ouvirmos a sua voz e sabedoria para podermos viver melhor e contribuir para uma existência mais próspera.
Este texto é uma homenagem a um dos maiores nomes da História da Medicina, dos Cuidados Médicos e da Saúde Pública em Portugal: Ricardo de Almeida Jorge. Sem ele, a peste que devastou o Porto jamais teria sido combatida de forma eficaz. Sem ele nunca teríamos a possibilidade de dispor de uma Direcção-Geral de Saúde (cujas origens se situam, precisamente, em 1899 e estão intimamente ligadas às ocorrências na cidade do Porto).
Artur Vieira de Jesus, Licenciado em História
Fontes e Bibliografia: - “A Direcção-Geral de Saúde – Notas Históricas, por Valentino Viegas, João Frada e José Pereira Miguel, Lisboa, 2006; -ALMEIDA, Maria Antónia Pires de, “O Porto e as epidemias: saúde e higiene na imprensa diária em períodos de crise sanitária, 1854-56, 1899 e 1918.” In Revista de História da Sociedade e da Cultura, n.º 12, Coimbra, Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 2012. - COELHO, Carlos Alberto da Cunha, “A Peste do Porto de 1899”, Porto, Imprensa Portugueza, 1900; - PONTES, David, “O cerco da peste no Porto – Cidade, imprensa e saúde pública na crise sanitária de 1899”, Porto, Universidade do Porto, Faculdade de Letras, 2012. - https://radioportuense.com/2018/12/25/a-peste-negra-que-assolou-o-porto/