A morte do último rei português... morte natural... ou não?

Londres acordava envolta em neblina naquele 2 de julho de 1932. O jardim de Fulwell Park ainda estava molhado do orvalho da noite quando o coração de D. Manuel II parou. O último rei de Portugal, que no dia anterior jogara ténis com a vitalidade de sempre, era encontrado morto poucas horas depois, sem testemunhas diretas do momento final. Tinha apenas quarenta e dois anos.
As notícias chegaram a Lisboa envoltas em silêncio e perplexidade. Um rei jovem, saudável, que praticava desporto, morria de repente, e logo em Londres, a cidade onde escolhera viver o seu exílio com serenidade. As versões multiplicaram-se como ecos desencontrados. Uns falaram de angina de peito, outros de edema da glote, outros ainda de asfixia súbita. Nenhuma versão convenceu por inteiro. Há quem diga que sentira uma simples dor de garganta na véspera, que mandou vir o médico, que este o aconselhou a descansar. Mas também há quem afirme que nessa mesma noite participou num jantar, conversou animadamente e parecia em plena forma.
Fulwell Park ficou envolto num mistério que o tempo não dissipou. Há quem recorde que a rainha, D. Augusta Vitória,mulher de D. Manuel II, se encontrava ausente e que o rei estava apenas com os criados. Foi um deles, segundo alguns relatos, quem o encontrou inanimado. Outros afirmam que o médico chegara demasiado tarde e que, com uma simples traqueotomia, poderia ter salvado a vida do monarca. A incerteza permanece, alimentada por silêncios, contradições e pela ausência de relatórios médicos claros.
O contexto histórico torna tudo mais inquietante. Portugal vivia ainda na sombra do regicídio de 1908, das conspirações e do sangue derramado no Terreiro do Paço. O assassinato de Sidónio Pais, em 1918, estava ainda fresco na memória. As sociedades secretas em Portugal contavam então mais de trinta mil membros e moviam-se com influência nas estruturas do poder. O nome de D. Manuel, mesmo longe, continuava a ser símbolo de uma legitimidade que muitos queriam esquecer. É legítimo perguntar se o seu desaparecimento súbito serviu algum propósito mais amplo do que a simples fatalidade biológica.
A vida de D. Manuel em Londres fora calma, mas nunca irrelevante. Manteve contactos com monárquicos, apoiou instituições culturais portuguesas e mostrou sempre interesse pelo futuro da pátria. Era um homem instruído, moderado, respeitado. Morreu sem descendência, e com ele extinguiu-se a linha direta dos Braganças. A morte, ao contrário da vida, veio sem aviso e com demasiadas versões.
Há pormenores que a História não consegue arrumar. Um rei deportado que morre subitamente, num país estrangeiro, após um dia de lazer, sem testemunhas próximas e com diagnósticos divergentes. Um corpo trasladado semanas depois, envolto na antiga bandeira azul e branca, recebido em Lisboa por uma multidão silenciosa. Um país dividido entre o respeito e a desconfiança, entre a memória da monarquia e o receio das sombras do passado.
A História oficial dirá sempre que D. Manuel II morreu de causas naturais. Mas a História raramente é oficial. Entre a angina e o envenenamento, entre o erro médico e a mão invisível da política, resta o perfume da dúvida. O rei que perdeu o trono talvez tenha perdido também o direito a uma morte simples.
O nevoeiro de Londres dissipou-se nesse dia, mas nunca se dissipou a incerteza sobre o que aconteceu em Fulwell Park. E talvez seja assim que o último rei de Portugal continua a reinar — não sobre um país, mas sobre um mistério que o tempo ainda não conseguiu resolver.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor