No âmbito do Dia Mundial da Criança, assinalado no primeiro dia de Junho, o CL procurou compreender de que forma a pandemia afectou os mais jovens.
Marta Ferreira
Beatriz Maio
Confira abaixo os testemunhos dos profissionais de saúde e ensino que colaboraram nesta reportagem, os quais têm observado de perto as consequências do novo coronavírus nas crianças e adolescentes, nomeadamente ao nível físico e mental.
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Tânia Marreiros, Educadora de Infância no CASLAS
Tânia Viegas Marreiros, 45 anos, é lacobrigense e residente em Lagos. Desde Outubro de 1996 que exerce a profissão de Educadora de Infância no Centro de Assistência Social Lucinda Anino dos Santos – Centro Infantil de Santo Amaro, altura em que concluiu o Bacharelato em Educação de Infância. O seu percurso profissional conta também com um complemento de Formação Científica e Pedagógica para Educadores de Infância, que realizou ao longo de 2 anos em regime nocturno, enquanto continuava a sua actividade laboral diurna.
O período de pandemia trouxe consequências sentidas por todos. Quem lida com crianças diariamente deparou-se com alterações comportamentais notórias, principalmente no regresso após o primeiro confinamento. Neste sentido, Tânia confessou que não só os alunos sentiram receio, como também os educadores: «Regressámos todos um pouco amedrontados e sem saber muito bem como lidar com todas as novas orientações», referiu, acrescentando que «algumas crianças regressaram efectivamente assustadas».
A rotina deixou de ser a mesma, o recinto escolar depende agora do cumprimento das normas impostas pela Direcção-Geral de Saúde; os mais novos deparam-se com preocupações e receios consequentes da possibilidade de serem infectados. A par deste cenário, a educadora revelou que, ao regressar às salas, as crianças tinham até «medo do toque, de se sentarem próximo dos seus amiguinhos». Começaram também a surgir mais «birras» e desentendimentos, havendo até quem sentisse necessidade de desinfectar as mãos sempre que tocava em algo – foram, aliás, vários os que levaram essa higienização a rigor.
Dada a forte capacidade de adaptação por parte das crianças, os educadores aproveitaram jogos e brincadeiras para que estas mudanças pudessem ser geridas mais facilmente. Tânia notou que os comportamentos ficaram mais «egoístas e individualistas», contudo, acredita que o regresso ao contexto escolar e às interacções sociais têm vindo a contribuir para lidar com as adversidades resultantes do isolamento. Acredita que os meses passados em casa, mesmo com o ensino à distância, limitaram a aprendizagem e condicionaram o contacto entre crianças e adultos.
O ajuste à realidade e às necessidades tem sido um desafio constante na sua profissão. A incapacidade de realizar visitas ao exterior com as crianças e possibilitar a interacção com diversos meios e entidades levaram a que este contacto passasse a ser feito nas salas de aula através de imagens e vídeos, por exemplo. Para a educadora, esta experiência em nada se «compara à riqueza das experiências que as crianças retiram de uma interacção física e directa», o que afecta as aprendizagens proporcionadas. Considera que a dinâmica familiar sofreu também alterações com a pandemia, no entanto, nem todas negativas, apontando como aspectos positivos o facto de algumas crianças terem podido passar mais tempo de qualidade com os pais.
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Cláudia Sá, Psicóloga Clínica – Naturboticae, Clínica Lacobrigense e Clínica de Medicina Chinesa de Lagos
Cláudia Sá, 43 anos, é natural de Leiria. Actualmente reside em Bensafrim e trabalha como psicóloga no Centro de Terapias Naturais Naturboticae e, em simultâneo, na Clínica Lacobrigense e na Clínica de Medicina Chinesa de Lagos. É licenciada em Psicologia pela Universidade Internacional da Figueira da Foz e Pós-graduada em Avaliação Psicológica e Psicoterapia pelo Instituto de Psicologia Aplicada e Formação. Especializou-se também em Psicologia Clínica, tendo já passado por diversos locais de trabalho, como o núcleo de Coimbra do Instituto de Psicologia Aplicada e de Formação. Ocupou ainda o cargo de Coordenadora e Psicóloga no projecto "AproximArte", em Lagos.
Segundo explicou, a chegada do coronavírus afectou a saúde mental de todos os que se viram forçados a passar por um processo de reeducação de condutas e alteração de hábitos: «A pandemia trouxe a necessidade de se reflectir sobre a saúde mental em Portugal». Na experiência de Cláudia, nos serviços de psicologia foi notório este impacto e apontou «o isolamento social, a ansiedade, o medo de serem contagiados, as novas regras e restrições impostas pelo Governo, o aumento da taxa de desemprego e a incerteza em relação ao futuro» como factores para o aumento da procura.
Assim, destaca o contributo desta ciência no processo de gestão e prevenção dos comportamentos humanos, relatando o aumento da ansiedade em indivíduos saudáveis e um agravamento em problemas de saúde mental já existentes.
Na sua opinião, a impossibilidade de socialização física foi o factor que mais «desorganizou» as pessoas: «Se por um lado o distanciamento social nos poderia salvar a vida, simultaneamente representou o principal factor de risco para a saúde mental». Cláudia sente que os pais recorreram à utilização de novas tecnologias para manter as crianças e jovens ocupados, principalmente durante os períodos de confinamento, o que «acabou por alimentar um problema para resolver outro, uma vez que o uso excessivo deste tipo de aparelhos dá origem a sintomatologia de abstinência, como ansiedade, irritabilidade, agressividade, apatia e isolamento social».
Embora acredite que é ainda cedo para avaliar o impacto da pandemia na saúde mental das crianças e adolescentes, a psicóloga prevê que o isolamento social, a ameaça contra a vida e as perdas económicas sobre a saúde mental venham a acarretar elevados custos sociais. O medo do contágio é, nas próprias palavras, um factor «de grande stress emocional para crianças e jovens» e acabará por provocar reacções ao nível da saúde mental que apenas se manifestarão mais tarde.
Houve necessidade de arranjar novas estratégias por parte da Ordem dos Psicólogos Portugueses para gerir esta «ansiedade generalizada da população na forma de encarar esta nova dinâmica social». Assim, criaram-se várias estruturas de atendimento e informação, como sites e linhas telefónicas de apoio, para que a resposta fosse «muito rápida e espontânea».
Em relação à consulta de Psicologia propriamente dita, Cláudia revelou que as alterações foram «ainda mais relevantes» devido às novas regras de distanciamento social, ao uso de máscara e, por vezes, ao uso do equipamento de protecção individual, que causaram um distanciamento «nada desejável» na relação de confiança entre psicólogo e paciente e dificultaram transmissão de informação importante. Na sua óptica, a situação com que nos deparamos há já mais de um ano tem seguramente influência no crescimento saudável de cada criança: «A Covid-19 é um marco histórico no desenvolvimento das próximas gerações. É expectável e normal que surjam, no futuro, mais problemas de ansiedade, stress emocional, agressividade e sintomatologia depressiva na infância».
Cláudia salientou também a importância de formar e preparar os pais, professores e educadores para novas abordagens psicopedagógicas e de identificação de sintomas provocados pela pandemia na saúde mental e no desenvolvimento global das nossas crianças e adolescentes e considera que «é cada vez mais importante promover serviços de apoio psicológico, como a consulta de Orientação Parental, no sentido de saber identificar os sinais de alerta e dotar os pais e cuidadores de estratégias que promovam o bem-estar físico e psicológico desta nova geração».
O trabalho desta profissional aproxima-a das experiências e sentimentos dos mais novos, uma vez que presencia, através das consultas, a incapacidade de compreensão das crianças face aos sacrifícios do dia-a-dia. «A escola representa, neste momento, um dos maiores desafios na rotina diária das nossas crianças. O lugar onde antes se brincava descontraidamente e se encontravam os amigos, se participava em actividades de grupo e se conhecia a expressão de cada professor, é agora um local com ainda mais regras, adultos de máscara, menos tempos lúdicos e com a peculiaridade de desencontrar intervalos e tempos de recreio para que as turmas não se cruzem», expôs.
Em suma, os sentimentos de ansiedade e frustração, bem como as eventuais dificuldades de adaptação e integração, fazem parte das alterações provocadas pelas condutas de prevenção do vírus. Afirma ainda que «estas novas modalidades são factores de stress que poderão desencadear alterações ao nível do comportamento, maior irritabilidade, conflitos familiares e entre colegas, humor depressivo, alterações do sono, alterações alimentares ou até na motivação e desempenho escolar, falta de interesse pelas tarefas escolares, dificuldades de aprendizagem, ou até, em alguns casos, risco de abandono escolar». Não obstante, acredita que os adultos têm a capacidade de minimizar os efeitos psicológicos da pandemia na geração mais nova.
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Rita João, Médica de Família Centro de Saúde de Lagos – USF Amendoeira
Ana Rita João Ferreira, de nome clínico Rita João, tem 33 anos e é natural de Vila Real de Trás-os-Montes e Alto Douro. Actualmente reside em Lagos, ocupando o cargo de Médica de Família no Centro de Saúde – USF Amendoeira de Lagos desde 2019. Realizou Mestrado Integrado em Medicina pela Faculade de Medicina do Porto, Pós-Graduação em Gestão dos Serviços de Saúde pela UTAD – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, assim como um Master em Estética Avançada pela APE – Academia Portuguesa de Estética. A somar a tudo isto, é especialista em Medicina Geral e Familiar.
O seu percurso profissional teve início em 2013. Entre outras façanhas, em 2015 foi professora convidada do primeiro ano do curso de enfermagem pela UTAD e desde 2018 que é tutora de internos do ano comum de alunos da Universidade do Algarve.
Rita João acredita que os cuidados de saúde tiveram de se reinventar face aos desafios diários impostos pela pandemia. Na área da Sáude, sente que foi colocada uma pressão acrescida nos médicos de família, de forma a dar resposta às novas formas de atendimento que, até hoje, não pararam de aumentar «sem que os recursos humanos sejam adaptados a esta nova realidade». As exigências assentam agora na resposta a e-mails, telefonemas, turnos de vacinação (quer nos centros de vacinação, quer ao domicílio), nas Áreas dedicadas aos Doentes Respiratórios (ADR), no seguimento diário dos utentes com suspeita ou com Covid-19 e no atendimento a quem não tem médico de família.
Embora seja um período marcado por adversidades, a médica desvenda que, devido ao seguimento domiciliário dos doentes com Covid-19, apenas cerca de 5% dos infectados tiveram necessidade de intervenção hospitalar. Contudo, confessa que «os profissionais de saúde estão exaustos» e que «se nada for feito, o Serviço Nacional de Saúde colapsa pela sua base».
Relativamente ao comportamento das crianças, admite que a mudança é notória tanto na consulta médica, como através da preocupação expressa pelos pais. A título de exemplo, Rita mencionou um estudo realizado na China, em Fevereiro de 2020, onde a distracção, irritabilidade, medo de que os elementos da família sejam contaminados, dependência excessiva dos familiares, perturbação do sono, pesadelos, falta de apetite e agitação foram as alterações comportamentais e emocionais apontadas como efeitos imediatos da pandemia no desenvolvimento psicológico de crianças e adolescentes.
À semelhança de Cláudia, a médica refere também que os sentimentos de solidão e isolamento poderão intensificar-se devido ao encerramento de parques infantis e à diminuição da realização de festas e oportunidades de convívio, assim como pela redução de actividades recreativas como desporto, artes e música. Na sua opinião, a permanência em casa e a limitação das actividades ao ar livre tendem a agravar as características de agitação e impulsividade das crianças, o que poderá mostrar-se «ainda mais preocupante» em crianças que sofrem de doenças do foro mental e do desenvolvimento. Adiante, acrescenta que «a pressão económica, social e profissional do confinamento, aliada à precariedade do contexto familiar, poderá ter potenciado os riscos de complicações emocionais, comportamentais e de relacionamento».
Rita relembra que embora a dimensão das repercussões no comportamento e desenvolvimento infantil não sejam ainda conhecidas na sua totalidade, observa-se que o confinamento originou uma adaptação nos relacionamentos, tendo as redes sociais ajudado a que fosse possível manter contacto entre crianças e adolescentes. Ainda que este seja um aspecto positivo, admite que o mesmo levanta algumas preocupações como «o tempo excessivo de ecrãs, os perigos relacionados com a Internet e o cyberbullying», que podem levar a problemas diversos na saúde física e mental dos jovens.
Como profissional de saúde, reconhece que as restrições e medidas adoptadas foram «absolutamente necessárias», mas confessa que comprometem o desenvolvimento social, cognitivo e emocional das crianças, visto que estas «são particularmente vulneráveis à ausência de contacto físico e socialização». Assim, aconselha a que se mantenham horários e rotinas de forma a estruturar o dia e estimular a interacção com as crianças, realizando actividades adaptadas à idade e supervisionadas por um adulto, sugerindo como exemplos contar histórias; estimular a leitura; desenhar; montar quebra-cabeças; jogos e brincadeiras que possam ser feitos em qualquer local, como mímica e caça ao tesouro; ajuda nas tarefas domésticas, entre outros.
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Galeria de imagens, da esquerda para a direita:
1 – Tânia Marreiros;
2 – Cláudia Sá;
3 – Rita joão.
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In: Edição Impressa do Jornal Correio de Lagos nº368 · JUNHO 2021