Tratar a memória da emigração: uma urgência histórica

Portugal deve muito aos seus emigrantes. Ao longo de mais de um século, foram milhões os que partiram, empurrados por dificuldades económicas, perseguição política ou falta de oportunidades. Em troca, enviaram remessas, criaram redes comerciais, sustentaram famílias e até ajudaram a legitimar internacionalmente o país em tempos de isolamento. Ainda assim, a memória desta emigração continua descurada.
Há milhares de documentos que testemunham essa experiência: registos de embarque, autorizações de saída, pareceres políticos, relatórios consulares, correspondência de associações no estrangeiro, imagens, listas de passageiros, processos de heranças ou de expulsões. São peças de um enorme património arquivístico que permanece, em larga medida, por tratar, digitalizar e disponibilizar.
Não estamos perante um problema técnico, mas sim perante um imperativo histórico.
Tive a oportunidade de conhecer esta realidade de forma direta, enquanto assessor na Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas. Percebi o potencial informativo e científico da documentação existente, e confrontei-me com a ausência de uma política nacional para o seu tratamento.
Entre os fundos à guarda da Direção-Geral dos Assuntos Consulares e das Comunidades Portuguesas — herdeira institucional de organismos como a Junta da Emigração ou o Instituto de Apoio à Emigração — encontram-se documentos fundamentais para compreender a política migratória do século XX. Desde instruções enviadas a consulados e atas de organismos deliberativos, até relatórios sobre emigração clandestina ou pareceres sobre acordos bilaterais.
Noutros arquivos públicos, igualmente relevantes, encontramos espólios relativos à correspondência de comunidades portuguesas nos Estados Unidos e no Brasil, campanhas de propaganda do Estado Novo junto da diáspora, fotografias de partidas e chegadas, relatórios de viagens marítimas ou documentação referente ao povoamento de territórios africanos.
Até nos arquivos da antiga polícia política, hoje sob custódia da Torre do Tombo, há fontes essenciais sobre o controlo exercido sobre os movimentos de fronteira e as comunidades no exterior. O mesmo se aplica a outros fundos menos explorados, como os processos de heranças de emigrantes falecidos no Brasil ou na Índia, ou a documentação ferroviária e sindical relativa ao trânsito laboral no espaço ibérico.
Tudo isto mostra que a memória da emigração portuguesa não se encontra num só lugar — está dispersa, fragmentada, vulnerável.
Essa realidade exige exatamente o oposto da negligência: impõe uma política articulada, com critérios técnicos partilhados, planeamento estratégico e responsabilização institucional. O tratamento arquivístico e digital desta documentação não pode ser deixado ao acaso nem entregue apenas à boa vontade de serviços sobrecarregados.
É necessário criar uma rede nacional de cooperação entre os organismos detentores da documentação — incluindo a DGACCP, os arquivos históricos centrais, o Observatório das Migrações e centros documentais especializados. Mas, sobretudo, é indispensável o envolvimento de uma universidade pública independente, com experiência comprovada na área da História e das Ciências Sociais.
Sem acompanhamento académico rigoroso, corre-se o risco de se desperdiçar informação, aplicar critérios erráticos ou transformar uma tarefa científica numa operação burocrática. A universidade deve garantir a qualidade do tratamento, formar investigadores e supervisionar todo o processo com a isenção que o tema exige.
Este trabalho técnico, por sua vez, tem de ser acompanhado de uma estratégia de divulgação pública. Os resultados devem ser partilhados através de exposições, plataformas digitais, publicações e programas educativos, em articulação com instituições como o Museu da Emigração, em Fafe, ou o Museu da Emigração Açoriana. A memória só vale se for acessível e se puder ser transmitida às gerações seguintes.
Por fim, este esforço deve merecer atenção ao mais alto nível político. A Presidência da República tem aqui um papel essencial. O exemplo dado por Cavaco Silva, ao envolver diretamente a assessoria neste domínio, deveria ser retomado. Não como retórica de circunstância, mas como compromisso institucional com um dos fenómenos estruturantes da nossa história contemporânea.
Tratar, digitalizar e tornar pública a documentação sobre a emigração portuguesa é mais do que uma tarefa arquivística. É um acto de justiça histórica. É a forma mais sólida e digna de reconhecer os que partiram — e de construir, com base na sua memória, uma noção mais íntegra do que somos.
Por Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor