Artigo de Opinião de Vasco Barreto – Secretário Geral da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna
O Dia Mundial do Doente foi instituído pela igreja católica em 1992 (após o diagnóstico da doença que viria a vitimar o Papa João Paulo II), com uma dimensão predominantemente espiritual e uma forte vocação caritativa. Em inglês, a designação é “World Day of the Sick”, e não Patient, ou seja, é mais uma referência à pessoa que sofre de uma doença do que ao doente enquanto utilizador dos serviços de saúde. Como tantas outras efemérides de origem religiosa, esta data tem potencialmente um alcance que ultrapassa o universo da fé e que acaba por coincidir com o da própria cultura. E até mais com o de uma cultura humanística do que com o de uma cultura estritamente médica (se esta existir sem aquela).
Em 2020, por esta mesma ocasião, falava-se de como seria um sistema de saúde que respondesse às expectativas, necessidades e valores dos doentes. Uma das mais importantes mudanças de paradigma das últimas décadas, em saúde, é o conceito de “Patient-Centered Care” (Cuidados Centrados no Doente). Resumindo o mais possível os princípios fundamentais deste modelo, ele preconiza: o acesso ágil e não discriminativo ao sistema de saúde; o respeito pelas preferências das pessoas e o seu envolvimento nas decisões (que só é verdadeiramente possível investindo numa estratégia de educação para a saúde); a integração de cuidados, ou seja, a articulação entre as equipas hospitalares e de cuidados primários, de modo a que a transição entre elas se faça sem perdas de continuidade, e procurando desviar o foco da prestação de cuidados dos hospitais para a comunidade, ou mesmo para a casa dos doentes; a priorização do conforto físico e do bem-estar emocional, com envolvimento da família em todas as fases do processo.
O que aconteceu desde esse dia 11 de Fevereiro de 2020 – ou, mais concretamente, desde 2 de Março de 2020, data do primeiro diagnóstico de Covid-19 em Portugal?
Ninguém tem dúvidas de que houve uma deterioração do acesso a cirurgias, exames, consultas, urgências ou até mesmo a receituário crónico ou a contactos pontuais com os médicos assistentes. Foram também muito evidentes as quebras de continuidade e as dificuldades na transição e integração de cuidados entre hospitais e centros de saúde. A comunicação com os doentes e com as famílias sofreu o impacto das barreiras físicas, mas também das deficiências organizacionais. Muitas vezes as escolhas dos doentes foram menos informadas e mais baseadas num modelo tradicional, paternalista, em que é o médico que decide, ou então adiadas para melhores dias. Em suma, houve um desvio de esforços e de recursos para o combate à pandemia, que deixou em segundo plano alguns avanços que vínhamos fazendo em direcção a um modelo Centrado no Doente. Passámos do dia mundial do doente para o ano mundial de uma doença.
Passou um ano. Do meu ponto de vista, não faz qualquer sentido orientar esta reflexão para o apuramento de responsabilidades, técnicas ou políticas, pelo agravamento das dificuldades no sistema de saúde. Dificilmente alguma estrutura sanitária suportaria a avalanche desta pandemia, e isso é visível pelo mundo fora. Esta doença chegou e vai aos poucos ocupar o seu lugar nas nossas vidas, entrar na rotina da prestação de cuidados, normalizar-se. Mais mês, menos mês, vai-nos permitir recentrar e voltar a definir prioridades. Gostaria que este dia fosse um ponto de partida para retomarmos o diálogo entre médicos, doentes e decisores em torno da construção de um projecto de saúde centrado nos doentes e nas necessidades dos doentes.
Era disto que estávamos a falar há um ano, não era?