Artigo de Opinião CARLOS MEDINA RIBEIRO
Há uns anos, estava eu na livraria Barata, em Lisboa, procurando leitura para essa noite, quando me deparei, inesperadamente, com o “Navegação de Cabotagem”, de Jorge Amado, que nunca lera; e imagine-se a minha surpresa quando, ao folheá-lo, vi que tinha uma dedicatória do autor a uma senhora muito conhecida, datada do dia do lançamento que ali mesmo decorrera, mais de 20 anos antes! E melhor ainda: ao lado desse, um outro exemplar, dedicado a uma outra personagem ainda mais famosa! Claro que lhes dei logo destino e novo dono, pelo que os tenho agora aqui comigo, fazendo inveja a todos aqueles a quem conto a história, para a qual nunca encontrei uma explicação totalmente plausível.
Passaram-se anos até que eu pegasse na obra mas, depois de a ler, só lamentei não o ter feito há mais tempo — pois, terminado em Junho de 1992 (pouco antes do 80.º aniversário do autor), é um extenso repositório de memórias deliciosas, abrangendo um período de mais de meio século e peripécias vividas em todo o mundo; de entre essas, muitas são as passadas em Portugal, país que ele adorava e conhecia bem, mas onde, durante a ditadura, esteve impedido de entrar. Uma delas foi quando, em 1976, já gorducho e sexagenário, veio até aqui, às Terras do Infante, travestido de turista ianque em férias — de bermudas, camisa às florinhas, sandálias e boné de marinheiro — e foi visitar a fortaleza de Sagres com a família. Ao chegar, eis que uma barraca de guloseimas e frutos secos lhe chama a atenção. Aproxima-se e, sem dizer palavra, tira um figo do monte e trinca-o, deliciado. — Good? – pergunta-lhe o vendedor, confirmando, mesmo sem querer, que o disfarce é bom. — Good! - responde o nosso amigo,entrando no jogo, e continuando a saborear o fruto.
Então, o outro, porventura achando-se muito engraçado, decide comentar em voz alta, para quem o quer ouvir: — Estás gordito, hem, filho da puta? Responde-lhe uma gargalhada dos circunstantes, a que se segue o grande embaraço do comerciante, vendo-se apanhado em falso e sem fazer a menor ideia de que o “fdp” é o autor da “Gabriela” que, à época, já toda a gente conhece.* Não se fica a saber, por esse livro, se alguma vez o autor de “Jubiabá” chegou a vir a Lagos, mas uma coisa é certa: se hoje em dia cá viesse, a realidade lacobrigense não lhe seria estranha; e digo isso pelo que se lê em “Terras do Sem Fim”, um romance de grande dramatismo acerca do cacau, com os “coronéis” a matarem-se uns aos outros para conquistar as matas virgens — nas quais, depois de mortos os homens, se matavam as árvores para plantar o precioso arbusto. E é a meio da obra que Jorge Amado intercala duas páginas de humor com sabor tipicamente lacobrigense: uma vez por ano, no Dia da Árvore, um dos arboricidas locais juntava as criancinhas da escola, dava-lhes uma prelecção sobre o valor das árvores (depois de um hino cantado em louvor da Natureza), e punha-as a plantar um arbustozinho raquítico — certamente com a presença de algum fotógrafo, para a publicidade no boletim lá da terra.