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"Para Quê Ir à Tunísia? Onde Vai a Nossa Política Externa"

"Para Quê Ir à Tunísia? Onde Vai a Nossa Política Externa"

Duarte Amaro, Vice-Presidente da JSD/Algarve

Há pouco mais de um mês, o Ministro dos Negócios Estrangeiros visitou, com a sua homóloga belga, a Tunísia, em representação de Josep Borrell, chefe da diplomacia europeia, e dos 27 Estados-Membros. A visita, concluída na noite de 10 de Maio, passou despercebida na comunicação social portuguesa – foi pouco noticiada, e muito menos comentada. A nota de imprensa publicada no site do governo cita João Gomes Cravinho, que enfatiza “o aprofundamento das relações entre a UE e a Tunísia, a curto e longo prazo, assente no espírito de parceria e em princípios fundamentais”. Foi esse, verbatim, o relatório que Gomes Cravinho fez da visita perante o Conselho de Negócios Estrangeiros da UE. O comunicado oficial não refere a manifesta degradação do Estado de Direito na Tunísia, o efetivo golpe de estado perpetrado pelo Presidente Saïed, ou a prisão de Rached Ghannouchi, líder do maior partido da oposição, detido desde 17 de Abril e condenado apenas dias depois da visita de Gomes Cravinho a um ano de prisão.

O crime de Ghannouchi (Presidente da Assembleia de Representantes do Povo até à sua dissolução em 2021 por Saïed e líder do partido islamo-conservador moderado Ennadha) foi ter, num discurso fúnebre, elogiado o falecido, um “homem corajoso” que não tinha medo de “tiranos”. Para além de Ghannouchi, mais de 20 opositores políticos foram presos na Tunísia desde o início de Fevereiro, incluindo políticos, ativistas, sindicalistas, e jornalistas. Ainda antes da prisão de Ghannouchi, os ataques à independência judicial e à liberdade de expressão e de impressa do Presidente Saïed já tinham sido descritos pela Amnistia Internacional como um “ataque agressivo” pelas autoridades à oposição, numa grave violação de direitos humanos. Saïed, eleito em 2019, suspendeu a constituição e dissolveu a Assembleia de Representantes do Povo em 2021, implementando uma nova constituição sem freios ou contrapesos ao poder presidencial e substituindo o anterior parlamento por uma nova, mais subserviente assembleia. Ao mesmo tempo, Saïed tem intensificado retórica racista contra imigrantes da África Subsaariana, enquanto a economia tunisina aguenta por um fio – Saïed recusou um empréstimo de 1.9 biliões de dólares em Abril, mas, sem apoio financeiro do FMI, o incumprimento da dívida é quase inevitável.

Antes da visita de Gomes Cravinho e de Hadja Lahbib, a sua homóloga belga, e antes mesmo da prisão de Ghannouchi, o Parlamento Europeu já tinha aprovado uma resolução manifestando “profunda preocupação com a deriva autoritária do Presidente Saied”, tomando nota de que o chefe de estado tunisino governa sozinho (sem governo, parlamento, constituição democrática, autoridade eleitoral independente, ou conselho superior de magistratura), condenando a sua retórica racista, e solicitando ao Alto Representante e aos Estados‑Membros “que denunciem publicamente a acentuada deterioração da situação dos direitos humanos” na Tunísia. Apesar da adoção desta resolução por uma significativa maioria (496 votos a favor, contra 28 votos contra e 13 abstenções, incluindo os dois eurodeputados do PCP), a nota de imprensa da visita dos dois ministros europeus não lhe faz qualquer referência. Lendo de relance, parece até impossível que a delegação luso-belga, em representação europeia, tenha aterrado em Túnis. Em que “princípios fundamentais” pode assentar qualquer parceria entre a UE e a Tunísia quando um Presidente eleito se livra do Estado de Direito para prender opositores e jornalistas depois de cimentar as bases constitucionais dum regime autocrático?

É evidente que, face à instabilidade política e económica na Tunísia, as prioridades europeias se centram na gestão dos fluxos migratórios. Tem naturalmente de ser visto neste contexto o comunicado da Presidente da Comissão Europeia, acompanhada dos Primeiros-Ministros holandês e italiana em Túnis, no âmbito duma visita à capital tunisina este domingo, onde anunciou 900 milhões de euros em assistência financeira, com 150 milhões adicionais em apoio orçamental imediato. A visita resultou também num novo acordo migratório, incluindo uma Parceria Operacional Anti-Tráfico e a entrega de 100 milhões de euros à Tunísia para a gestão fronteiriça e operações de procura e resgate, apoiando “uma política de migração holística, baseada no respeito pelos direitos humanos”.

A União Europeia segue na Tunísia a política que estreou na Turquia, em que fecha os olhos à erosão do Estado de Direito e às violações de direitos humanos de protoautocratas, financiando a sua crescente repressão em troca de paliativos migratórios, facilitando cada vez maiores derivas autoritárias, e alimentando instabilidade política e económica. Se este negócio faustiano, sempre injustificável, seria compreensível nos países europeus mais expostos à imigração ilegal, é absurdo que seja um Ministro português que se desloque a Túnis (evidentemente no âmbito destas negociações), ainda por cima no dia em que celebramos os valores democráticos que são evidentemente componente inegociável do projeto europeu, sem que o devido escrutínio público tenha lugar acerca do seu papel, do papel do Estado Português, ou das prioridades do Ministério dos Negócios Estrangeiros nas relações Portugal-Tunísia.

É concebível que o interesse nacional implique uma abordagem às relações lusotunisinas baseada no apoio inequívoco ao Presidente Saïed? Quase 13 anos depois da autoimolação de Mohammed Bouazizi, no país que viu nascer a Primavera Árabe, que, pela força da sua sociedade civil, incluindo o seu vibrante movimento sindical, expulsou um ditador e viu surgir a alvorada da democracia, será hoje sábio – muito menos moral – subornar um chefe de estado autoritário para conter uma maré migratória? Se “a maior conquista da revolução foi talvez que os Tunisinos descobriram o poder da sua voz coletiva para depor ditadores e provocar mudança política concreta”, fará sentido hoje ir contra essa conquista, que por não ser constitucional é ainda assim o mais forte legado da Revolução de Jasmim? Não deixa de ser irónico que Gomes Cravinho, na altura Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, tenha admitido em 2011 um “falhanço coletivo do lado europeu em perceber a profundidade desse ressentimento que grassava na sociedade tunisina”, e pareça hoje (tal como, naturalmente, alguns dos seus homólogos europeus) empenhado no mesmo falhanço.

Não custa muito perceber porquê. Às três tradicionais linhas orientadoras da política externa portuguesa (a Europa, o Atlântico, e a Lusofonia), o governo do PS acrescentou outras três, definidas em 2018 pelo Embaixador Pedro Costa Pereira, na altura DiretorGeral de Política Externa: as comunidades portuguesas; a internacionalização da economia; e o multilateralismo. Ora, destas três, extraordinária enfase tem sido dada à internacionalização. Nenhuma das 12 prioridades do PS aquando das legislativas de 2022 se integrava na política externa, com a possível exceção da 12ª, que se focava no aumento das exportações. Numa recente entrevista para um órgão interno do PS, Gomes Cravinho acentua nas relações não só com parceiros tradicionais como o Brasil ou Angola mas estados magrebinos como Marrocos ou a Argélia o aspeto económico e financeiro. Menções de direitos humanos, de Estado de Direito, ou de diplomacia com valores desaparecem completamente – o que resta é apenas política mercantil, transacional. É neste contexto, sem dúvida, que se enquadra o discurso do Ministro dos Negócios Estrangeiros no Seminário Diplomático em janeiro deste ano, quando Gomes Cravinho disse que, mais do que o aprofundamento de relações com estados com idênticos valores, a diplomacia serve para “detetar e amenizar as profundas clivagens que são apanágio destes tempos”. À covardia e moleza típica da nossa diplomacia (recorde-se a recusa portuguesa em expulsar diplomatas russos em 2018, na sequência do Caso Skripal, quando 23 países, incluindo 16 Estados-Membros da UE, o fizeram), junta-se agora uma abordagem que a tudo subordina às exportações, sem aprender com a Alemanha dos perigos de deixar política comercial ao leme dos negócios estrangeiros.

Se, como menciona o Embaixador Pedro Costa Pereira, a “capital mais próxima de Lisboa é Rabat”, importa delinear uma estratégia para a nossa relação com o Norte de África – uma estratégia que não pode ser definida sob a chantagem migratória desses estados. Temos assumido como vocação portuguesa uma “capacidade de fazer pontes”, como disse Gomes Cravinho. Mas isso não implica uma política externa amoral, indiferente às condições domésticas, aos valores e aos “princípios fundamentais”, dos países com os quais nos relacionamos. Implica sim uma discussão aberta sobre o equilíbrio entre interesses comerciais e a promoção dos direitos humanos, ou sobre o nosso papel enquanto ponte entre a Europa e outras regiões. Implica que, no mínimo, houvesse debate sobre uma visita desta natureza; que houvesse debate sobre a posição portuguesa sobre o acordo UE-Tunísia; ou que houvesse debate sobre o papel do Ministério (e do Ministro) dos Negócios Estrangeiros nesse acordo. Implica, absolutamente, que a par de anódinas declarações sobre frutífero diálogo, se condene, conforme resolução do Parlamento Europeu, a deterioração dos direitos humanos e do Estado de Direito na Tunísia.

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