Artigo de Opinião de Medina Ribeiro
Alguns dos mais saborosos capítulos de “D. Quixote de la Mancha” são os que contam como Sancho Pança governou a sua Ilha Barataria — o que fez com grande sucesso, não só por ter usado abundantemente o senso-comum que o caracterizava, como por ter seguido à risca os conselhos do seu estimável amo.
Ora, e no que a estes respeita,o autor salienta que o “Cavaleiro da Triste Figura” só disparatava quando estavam em causa assuntos de cavalaria, sendo muito assisado no respeitante a todos os outros. E esses sábios conselhos versavam tudo e mais alguma coisa, desde a forma correcta de andar, comer, vestir, cavalgar e falar, até à higiene das unhas, sendo um perfeito manual de comportamento que, em muitos aspectos, nada perdeu em actualidade.
Ora veja-se este:
«Não faças muitas leis, e, se as fizeres, procura que sejam boas, e sobretudo que sejam respeitadas e que se cumpram; que as leis que se não respeitam é o mesmo que se não existissem; antes mostram que o governante que teve discrição e autoridade para as promulgar, não teve valor para fazer com que se cumprissem, e as leis que atemorizam e não se escutam vêm a ser como o cepo, esse rei das rãs, que ao princípio as espantou, e depois menosprezaram e treparam para cima dele».
Trata-se da fábula de Esopo “O Rei das Rãs”, com mais de 2600 anos, que nos fala de umas rãs que, irritadas com a anarquia que reinava lá no charco, pediram a Zeus que lhes mandasse um rei que metesse ordem na casa. Não as levando a sério, o Rei dos Deuses atirou-lhes um cepo que, caindo no meio da água com grande fragor, as assustou e manteve em respeito. No entanto, “foi sol de pouca dura” pois, a breve trecho, todas viram que daquela “autoridade-da-treta” não vinha qualquer perigo e, saltando-lhe para cima, voltaram à anarquia habitual.
Como todos sabemos, a fábula não só é certeira como é perfeitamente actual, pois não faltam povos com uma atracção irresistível pelas leis-da-treta, vivendo uma farsa colectiva que abrange o legislador que as produz, o cidadão que as desrespeita, as autoridades que não actuam e os tribunais que também não ajudam muito.
Quanto a nós, consolemo-nos com o facto de que essa comédia não é só de agora, e muito menos uma especialidade caseira — note-se que, já no século XIX Mark Twain gozava com a inércia da polícia de Nova Iorque quando, em “O Pretendente Americano”, propunha que se substituíssem os respectivos agentes por MORTOS, alegando que estes fariam o mesmo que os VIVOS... e por metade do preço.
Só as limitações de espaço me impedem de relatar os inúmeros casos que conheço, de terras com autoridades a mais (que se estorvam, ou até se anulam umas às outras), de outras com autoridades a menos (ou sem meios), e de outras, ainda, com autoridades em número correcto... mas cuja principal actividade consiste em assobiar para o lado.
Ah!, reparo agora, mesmo no fim do espaço disponível, que dissertei sobre muita coisa, mas não falei cá da terra, o que seria o corolário de tanto circunlóquio. Mas não é grave; talvez possa deixar essa parte ao cuidado dos leitores, não acham?