A ilha Terceira nunca foi vencida

Há terras que se medem não pelo tamanho mas pela têmpera. A Terceira é uma dessas ilhas. Rodeada pelo Atlântico, mas voltada para a História, nunca pertenceu verdadeiramente ao mundo dos vencidos. Enquanto outras esperaram ordens de Lisboa, a Terceira tomou as rédeas delas e traçou caminho próprio.
Em 1580, quando Filipe II de Espanha passou a ocupar o trono português, a Terceira resistiu. Foi a única ilha dos Açores que se recusou a reconhecer o domínio filipino, acolhendo D. António, Prior do Crato, como rei legítimo. Só três anos depois, em 1583, é que as forças espanholas comandadas por D. Álvaro de Bazán conseguiram dominar a ilha. Mas nem o sangue derramado nem a vitória militar apagaram a memória da resistência. A Terceira ficou com a marca do desafio.
Mais de dois séculos depois, voltou a cumprir o seu papel. Em 1828, com a aclamação de D. Miguel e a restauração do absolutismo, a Terceira tornou-se o principal bastião da legitimidade liberal. Foi em Angra que se instalou a regência em nome de D. Maria II. Foi ali que se organizaram as forças constitucionais, que se reuniram meios, prepararam embarcações e delinearam a estratégia que daria início à reconquista da ordem liberal no território continental.
A vitória de 11 de Agosto de 1829, na batalha da Vila da Praia, travada contra uma numerosa expedição miguelista, confirmou a importância da resistência açoriana. Como reconhecimento, a Coroa outorgou à cidade de Angra o título de Angra do Heroísmo — e a ilha passou à História com o epíteto que ainda hoje orgulhosamente ostenta.
Não se tratou apenas de episódios militares. A Terceira nunca foi bastião por razões de conveniência ou oportunidade. Foi porque acreditava na causa. A liberdade, ali, não era abstracção. Era convicção. O povo tomava parte, não por cálculo, mas por fidelidade a um ideal de governação justa e representativa. A legalidade constitucional era, para muitos, uma extensão do próprio sentido de pertença à Nação.
Já no século XX, a Terceira voltaria a ter relevo estratégico. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi na base das Lajes que os aliados instalaram uma posição crucial no Atlântico Norte. Portugal, embora mantendo a neutralidade, soube tirar partido da importância geográfica da ilha. Salazar, sem abdicar da soberania, manobrou com perícia entre Londres, Washington e Berlim. Mais uma vez, a Terceira estava no centro dos acontecimentos — discreta, mas decisiva.
Tudo isto faz da Terceira uma ilha singular. Não só nunca se rendeu verdadeiramente, como serviu de âncora a uma ideia de Portugal que resistia mesmo quando o continente hesitava. Por isso, falar da Terceira é reconhecer que há lugares onde a dignidade se defendeu com armas, mas também com carácter.
Num tempo em que o país parece por vezes esquecer a sua espinha dorsal, a Terceira permanece. Inteira. Firme. Heroica. Não porque o proclame, mas porque o demonstrou. Quantas terras podem dizer o mesmo?
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor