Artigo de Opinião de JOSÉ VELOSO
«… há muitos que, como os cães que ladram sempre aos desconhecidos, também condenam e odeiam o que não compreendem.» Pico Della Mirandela, in Discurso Sobre a Dignidade do Homem Há 25 séculos, Hipodamo de Mileto, filósofo e matemático grego, para dar a resposta urbana à sociedade democrática, por definição formada por cidadãos iguais em direitos e deveres, inventava em Mileto o urbanismo. Nessa nova cidade, o rigoroso traçado ortogonal de ruas e lotes iguais, fornecendo condições iguais para todas as casas dos cidadãos, realizava esse preceito social e político.
Outro princípio basilar cumprido, era que a democracia, fundada no diálogo público, praticava a filosofia da sociedade centrada no cidadão, no prazer individual de viver e no bem estar colectivo, com a matriz da excelência e da cultura nas expressões da actividade humana. Coerentemente, o centro de Mileto dava corpo à democracia com os meios de realização da vida colectiva, do encontro social e do debate dos temas comuns. Hipodamo ia para além do planeamento físico, abria a porta do urbanismo integrado, isto é, um todo indecomponível, formado pelos determinantes da forma da cidade e da vida de cidadãos livres intervenientes na comunidade. Inventando o urbanismo, Hipodamo criava as condições para a urbanidade. Pensemos então Lagos, à luminosidade e actualidade desta multisecular teoria de cidade. Pois Lagos não é produto de um planeamento erudito e democrático, mas de um urbanismo espontâneo, orgânico, humanista, integrando os dítames das relações de poder e as particularidades naturais do local, com as condições objectivas dos meios de trabalho, subsistência e defesa e dos equilíbrios sociais duma comunidade coesa, embora escalonada. Era fazer cidade pelo uso empírico dos saberes herdados do urbanismo planeado. A colina era ali, o mar estava lá baixo, os terrenos adequavam-se à agricultura, era indispensável protecção contra ambições humanas exteriores. Com estas condições naturais ao lado das subjectividades culturais, a razão intervinha para as ruas ligarem ao mar, origem de tudo e donde tudo vinha, às portas das muralhas, às praças onde acontecia a vida colectiva. Então a população apropriou-se dos espaços públicos urbanos e fez surgir saudáveis relações de vizinhança. Na mescla da riqueza dos ambientes assim criados e da qualidade do tecido construído, ficou definida uma urbanidade muito própria e única, que singularizou a cidade. Assim nasceu e chegou até nós a fabulosa urbanidade, prenhe de verdade, feita património, que deu
fama e prestígio a Lagos. Mas hoje este património, que persistira por séculos, está esmagado por não valores ignorantes do papel da história, da cultura e do saber na construção da cidade. Com a especulação elevada a força motriz, chegaram as destruições ambientais, as exclusões sociais e a desestruturação urbana. Sobrevive, mal conseguindo respirar, mas ainda encanta e seduz, a memória da urbanidade de Lagos. O futuro pede a urgente discussão de Lagos, com tempo e seriedade, para a reinvenção da sua urbanidade. Mas percebe-se que o poder reinante não tem nem vontade, nem capacidade para isso. Nem formação democrática.