(Z1) 2025 - CM de Vila do Bispo - Um concelho a descobrir

A democracia ganhava em reconhecer os que ficaram fora do Panteão

A democracia ganhava em reconhecer os que ficaram fora do Panteão

Há ausências que pesam mais do que presenças. No silêncio de certos túmulos, ou na sua ausência, ouve-se o eco da ingratidão de um país para com os seus. O Panteão Nacional, esse altar civil da memória portuguesa, acolhe alguns dos nossos grandes. Mas ignora ainda aqueles que, em momentos decisivos, deram tudo à pátria e quase nada pediram em troca. Não estão lá. Não porque lhes falte mérito. Mas talvez porque, entre nós, a memória nem sempre coincide com a justiça.

Portugal é um país pródigo em esquecer os seus melhores. Já passou tempo suficiente para o país olhar com seriedade para quatro nomes que moldaram a liberdade, a decência política e a esperança de um povo. Zeca Afonso, Salgueiro Maia, Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa. Quatro rostos, quatro destinos distintos, quatro vidas entregues com coragem e convicção à construção de uma democracia que hoje parece cada vez mais frágil, mais dispersa, mais exposta aos ventos da demagogia e da manipulação.

Zeca Afonso não teve cargos, não procurou honras, não escreveu programas de governo. Mas bastou-lhe uma canção. Grândola, vila morena, dita com voz serena e indómita, valeu mais do que mil discursos. Sem ela, não haveria madrugada, nem cravos, nem soldados a descer a Avenida. Com ela, desarmou-se o medo, abriu-se a história e o povo, esse povo sempre adiado, encontrou-se a si próprio. Há quem diga que Zeca recusaria estar no Panteão. Talvez sim. Mas há gestos que não são para os mortos. São para os vivos. E nós, vivos, devemos-lhe mais do que apenas um nome numa rua ou um palco num festival.

Salgueiro Maia foi o rosto puro do 25 de Abril. Não pediu nada. Não se serviu do que fez. Não quis ministérios, nem palácios, nem perpetuação. Quando outros se atropelavam por lugares, ele retirava-se em silêncio. Mas foi ele quem parou tanques, quem evitou sangue, quem impôs a ética com uma voz firme e simples. O país que ele ajudou a libertar foi o mesmo que o deixou morrer no anonimato, com uma pensão envergonhada e uma memória por cumprir. Um país sério já o teria colocado no Panteão, não para o santificar, mas para dizer às novas gerações: foi assim que se faz uma revolução sem cinismo.

Francisco Sá Carneiro morreu demasiado cedo para ver o que a política viria a ser. Morreu como viveu, a combater estruturas ocultas, a tentar refundar a direita, a lutar por um Estado digno, livre e limpo. Primeiro-ministro em funções, desapareceu num atentado que Portugal ainda não teve a coragem de nomear com clareza. A ausência de justiça em Camarate é a ferida aberta da nossa democracia. E a ausência de Sá Carneiro no Panteão é a sua continuação simbólica. Um Estado que não honra os seus mártires é um Estado que se recusa a aprender com os seus próprios traumas.

Ao lado dele, naquele mesmo voo, seguiu Adelino Amaro da Costa. Um democrata-cristão de convicções fundas, que via na fé um compromisso público com os pobres, com os militares, com a integridade. Ministro da Defesa, estava a investigar negócios obscuros de armas. Pagou com a vida. Morreu ao serviço da verdade. A sua figura representa um centro político honesto, patriótico, hoje praticamente extinto. Ignorá-lo é ignorar um modelo de participação cívica que ousava ser moral sem ser moralista, popular sem ser populista, comprometido sem ser cúmplice.

Portugal precisa de símbolos. Mas precisa, sobretudo, de lhes dar o lugar certo. Colocar estes quatro nomes no Panteão Nacional não seria apenas um gesto cerimonial. Seria um acto de educação democrática. Um antídoto contra a amnésia. Um grito contra o cinismo instalado. Um abraço, ainda que tardio, àqueles que nos deram, cada um à sua maneira, a possibilidade de hoje estarmos aqui a escrever, a votar, a discordar. Livres.

A democracia não se defende apenas nas urnas. Defende-se na forma como recordamos os que a fizeram possível. Quando se aproxima o meio século da Constituição, é tempo de cumprir com todos. Porque nenhum país é livre se não sabe honrar quem lhe deu a liberdade.

Paulo Freitas do Amaral

Professor, Historiador e Autor

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