Artigo de Opinião JOSÉ VELOSO
«Feliz aquele que transfere o que sabe, e aprende o que lhe ensinam» Platão
De vez em quando, acontece que por esta nossa terra se fala de cultura e de política cultural, tanto a nível nacional como local, sem que, que eu saiba, alguma vez se tenha esclarecido que é a presença ou a ausência da cultura que marca o grau de qualidade da administração pública. Aliás, em termos da situação no nosso Concelho e em coerência com o uso e costume dos ocupantes das cadeiras do Poder Local, actuando como seus proprietários, nunca este assunto foi posto a debate público, como mandaria a boa prática democrática, se tal fosse informador do seu pensamento e estivesse nos seus hábitos gestionários dos bens da comunidade. Ora a cultura dum povo definese, em síntese, como a expressão maior da sua vida e do seu sentir e, no limite, das suas comunidades naquilo que têm de comum. Acresce que, nas manifestações culturais, ao lado dos conhecimentos adquiridos, é componente estrutural a busca incessante de novas formas e novos saberes, sempre com raízes mergulhando fundo na genuinidade e autenticidade das heranças recebidas. Era assim que Picasso, enquanto inovava nas formulações estéticas do século XX, estudava exaustivamente, pintando as suas próprias leituras, «as meninas», obra prima pintada por Velasquez no século XV. Também Sophia encontrava no sentido maior, democrático, da estética helenista da Antiguidade Clássica, as referências conceptuais para representar a sua visão meridionalista dos tempos de hoje. E Cutileiro mostrava a leitura, nos nossos dias, de Sebastião, rei imberbe do Renascimento, incapaz de suportar o peso do seu lugar na História e no seu tempo. No mesmo sentido, cidadãos locais, em igual acto de liberdade e cultura, propunham para Lagos o Forum dos Descobrimentos, repositório vivo e actual da presença quatrocentista da cidade marítima e seus navegadores, no percurso infindável, com os seus sucessos e dramas, do desenvolvimento do saber e do conhecimento humano. Uma oportuna e indispensável verificação, é que a cultura só atinge a sua dimensão plena em condições que permitam liberdade criativa, o que, nos nossos dias vale dizer, em termos colectivos, uma sociedade funcionando em bases democráticas. Assim, é deliberadamente que não têm lugar nestas considerações as derivas culturais, nomeadamente de pretexto ou influência religiosa, como também de classe, que originam, por todo o mundo como foi entre nós, formas execráveis de sociedade. Por outro lado, faz parte da actividade cultural de criadores artesãos e eruditos e é em todos intuitiva e intrínseca, a necessidade de exposição do seu trabalho a escrutínio público. Nenhum criador nas artes plásticas, na literatura e poesia, nenhum artesão em qualquer ramo, nenhum investigador e cientista, nenhum pensador, ambiciona guardar para si o fruto do seu labor. De facto, desde sempre e mesmo até antes da História, Foz Côa é um exemplo, que essa necessidade de comunicar, de registar e divulgar casos e memórias da vida, faz parte da natureza humana. Não foi por acaso, mas tendo a consciência disso como participante activo e lúcido da época do Renascimento, que Gutenberg, ao lado de outros libertando o pensamento do obscurantismo da Idade Média, preencheu a carência de uma forma mecânica de fixação perene e reprodução dos seus raciocínios, saberes e opiniões. Inventou a imprensa, acontecimento fundamental na história da circulação de ideias à escala mundial, que persiste insubstituível. No entanto, hoje a cultura caiu no sorvedouro implacável da sociedade de consumo. As manifestações culturais passaram a produto comerciável ou, mais grave, como investimento, como matéria de obtenção de lucro e de promoção social e económica, individual e de grupo. As formas correntes são o espectáculo e a imagem, gráfica ou construída, quantas vezes sem conteudo, valendo apenas por si. O cidadão passou a ser sujeito a uma avalanche descontrolada de efeitos especiais e de publicidade inventora de necessidades supérfulas. O valor de cada caso é medido pela quantidade que representa em moeda corrente, em espectadores e em exemplares ou bilhetes vendidos. A capacidade crítica do cidadão, deixou de ser orientada para a avaliação em valor absoluto daquilo que lhe é dado a apreciar, reduzido que foi à condição de receptor da promoção de não valores assim absorvidos como válidos. A política cultural da administração pública local em Lagos, prima por participar activamente nesta situação. A excepção cultural dos que buscam a independência, é aqui usada e manipulada como óptima legitimação da regra geral e suportada pela condição, sabiamente nunca expressa, de cedência aos dítames do autoritarismo, ou de aceitar a quási clandestinidade, mas sempre sem perturbação do sistema. O resistente que não aceitar, paga o preço da marginalidade.