Maria Rosa diz ainda sentir energia para trabalhar. «Sou o padre da freguesia»
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«As clientes desabafam muito comigo, muito, contam-me coisas, pois sabem que eu não vou transmitir nada a quem quer que seja.»
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Em entrevista ao Correio de Lagos, Maria Rosa da Ponte, de 79 anos, e desde 1965 proprietária de um salão de cabeleireira no 1º. andar de um prédio situado na Rua Cândido dos Reis, nº. 21, nesta cidade, recorda como se iniciou nesta profissão, os tempos áureos, em que trabalhava de manhã à noite, tinha 4 funcionárias e recebia trinta clientes por dia, e como a Covid-19 quase a fez desistir da actividade. O filho, Miguel, é que não deixou.
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O pai, o conhecido "Joaquim da Ponte", da Rua da Capelinha (conhecida por ‘Rua dos Burros"), em Lagos, sempre a incentivou a estudar, mas o sonho de Maria Rosa era ser cabeleireira. Conseguiu desde muito nova, pouco depois de ter concluído a quarta classe na escola primária. Começou nesta profissão aos 12 anos e, hoje, com 79, ainda sente motivação para continuar a trabalhar no salão de que é proprietária.
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«Fiz a quarta classe a fugir para me despachar. Só queria ser cabeleireira», enquanto que «o meu pai queria que eu fosse estudar, para ser diferente, para ter outra vida»
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«O meu pai queria que eu fosse estudar para ser diferente, para ter outra vida. A minha irmã foi estudar, mas eu não quis e não me sinto arrependida. Não gostava de estudar. E fiz a quarta classe a fugir, para me despachar. Só queria ser cabeleireira. Sempre foi esse o meu desejo. Um dia fui arranjar o meu cabelo à Dona Maria França, que tinha um salão na Rua Conselheiro Joaquim Machado, perto da Igreja de São Sebastião, ela estava com falta de uma empregada, pois a outra tinha saído, e comentou: "é mesmo uma mocinha jeitosa para vir para cá." Depois, disse-me para eu estar lá no dia seguinte às 9:00 horas. Eram 8:30 horas e já eu estava à porta (risos)», recorda, ao nosso Jornal, Maria Rosa Ponte, conhecida por ‘Dona Maria Rosa’, a mais antiga cabeleireira de Lagos, de onde é natural, e que já soma 55 anos de actividade. Esta entrevista, curiosamente, estava marcada há quatro anos, mas com o falecimento do seu marido em 2018 e, mais recentemente, devido ao surgimento da Covid-19, foi sendo adiada. Só no dia 14 de Setembro de 2020 foi possível ao Correio de Lagos assistir a uma manhã de trabalho no salão da cabeleireira Maria Rosa.
"Qual foi o seu primeiro salário?" Após uma breve pausa para pensar e com algumas dúvidas à mistura, respondeu: «Acho que foi vinte escudos». Depois, prosseguiu «foi aumentando e fiquei a trabalhar até o meu Miguel (o seu único filho) nascer. Comecei ali aos 12 anos, no salão da cabeleireira Maria França, a Madame França, como era conhecida».
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Alugou, em 1965, o. apartamento para instalar o salão de cabeleireira por 300 escudos. Não quis arrendar o prédio por 800 escudos mensais
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Num certo dia, após ter saído do Cine-Teatro Império, onde assistiu a mais uma sessão de cinema, a Dona Maria Rosa, acompanhada pelo seu marido, António Joaquim dos Reis Silva (antigo encarregado na fábrica de cortiça da CAFI e jogador de futebol do Esperança de Lagos, Portimonense e Silves), com quem veio a casar em 1962, passou mais abaixo, na mesma rua, a Cândido dos Reis, olhou para um prédio em construção e ficou encantada ao ponto de o ter marcado logo como as futuras instalações do seu salão. «Era mesmo bom ir para ali. Depois, fui ter com o dono, o senhor Cruz, e aqui estou desde 1 de Maio de 1965», disse a conhecida cabeleireira desta cidade. Na altura, «até podia ter alugado todo o edifício por 800 escudos mensais». Contudo, preferiu, apenas, o apartamento situado no primeiro andar, para montar o salão de cabeleireira, «pela quantia de trezentos escudos».
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«Houve um dia (31 de Dezembro), em que quando saí daqui fui a correr para casa, porque já era quase meia-noite, por causa da passagem-de-ano. Tive sempre muito, muito trabalho. Havia muito movimento»
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Sobre os primeiros tempos neste salão, situado na Rua Cândido dos Reis, nº. 21, em Lagos, Maria Rosa, sem esconder natural saudade, abriu o baú das memórias para recordar: “Tive sempre muita, muita gente, em média, vinte a trinta clientes por dia. Ficavam a conversar numa sala, enquanto eu atendia outras, noutro espaço. Trabalhava de manhã à noite e tive quatro empregadas para serviços de manicure, pedicure e massagista. Eu começava logo de manhã, às 9:00 horas, e, às vezes, acabava às dez e onze da noite. Houve um dia (31 de Dezembro), em que quando saí daqui fui a correr para casa, porque já era quase meia-noite, por causa da passagem- -de-ano. Tive sempre muito, muito trabalho. Havia muito movimento», reforçou. «E tudo legal!», fez questão de frisar. Isto, numa cidade onde nunca faltaram cabeleireiras e cabeleireiros, como «a Dona Floripes, aqui ao lado, a Maria França, a Marieta, a Celina, o Cândido Soares», entre outros, observou.
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Antiga professora primária, Idalina Abreu, foi a primeira cliente
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Curiosamente, uma antiga professora primária de Maria Rosa foi a sua primeira cliente, Idalina Abreu, mulher do conhecido professor Abreu. E qual a cliente mais famosa que passou por este salão? Maria Rosa não faz distinções. «São todas iguais e são todas boas pessoas. E eu sou como um padre. Desabafam aqui muito comigo, muito, muito, contam-me coisas, pois sabem que eu não vou transmitir nada a quem quer que seja. Por isso, digo que sou o padre da freguesia. Às vezes, quando me perguntam alguma coisa, respondo logo: "não sei de nada"» - garantiu.
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«Ainda me sinto com energia para continuar a trabalhar»
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Depois da morte do marido, em 2018, Maria Rosa, já reformada, pensou em fechar o salão e ficar em casa. O filho opôs-se, sugerindo à mãe que continuasse a trabalhar para ocupar o tempo e evitar problemas físicos e psicológicos que poderiam resultar da inactividade. «Estou aqui, todos os dias, até à uma e meia, duas horas da tarde. O meu filho traz- -me de manhã e vem buscar-me à hora do almoço. Ficar sempre em casa também cansa, satura. E corria o risco de ficar com artroses. Ainda me sinto com energia para continuar a trabalhar», notou a famosa cabeleireira de Lagos.
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«Agora, tenho as clientes habituais. Em média, atendo três ou quatro por dia” (…) com marcações e de hora a hora, para manter as distâncias» por causa da Covid-19
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Nos tempos actuais, tudo é diferente. «Agora, tenho as clientes habituais. Em média, atendo três ou quatro por dia. Tenho uma cliente, antiga Professora, a senhora Teresa Pires, que vem cá desde miúda. Só trabalho de manhã, deixei de trabalhar à tarde. Não se justifica, pois numa rua como esta, há anos fechada ao trânsito, há menos movimento», contou Maria Rosa.
A Covid-19 limitou a sua actividade como cabeleireira. «Este salão esteve fechado e eu fiquei em casa durante três meses. Quando reabri, passei a receber as clientes a horas distintas e por causa do ‘bicho’ agora só com marcações. E de hora a hora, para manter as distâncias, como determinam as regras de segurança da Direcção-Geral da Saúde», especificou, enquanto atendia, bem disposta, uma cliente habitual, Maria João Barrocal. E numa altura em que em Lagos há muitos cabeleireiros, Maria Rosa, entre risos, desabafou: «mas a mim ninguém me faz concorrência. As minhas clientes não se vão embora». Isto, apesar da idade, já que a maioria tem mais de 80 anos.
Antigamente, eram as empregadas que lhe tratavam o cabelo. Porém, com o decorrer do tempo, tudo mudou. «Agora, corto eu. E quem me arranja, às vezes, é uma pequena que vem aqui dar-me um jeitinho», esclareceu. As duas netas nunca sentiram interesse em seguir as pisadas da avó como cabeleireira, uma é fotógrafa e a outra seguiu carreira na área da moda, ligada ao vestuário.
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Dos encontros na Expo-Matosinhos e no Casino Estoril com cabeleireiros famosos, em busca de formação e novas experiências, às viagens por vários países oferecidas por marcas de referência
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Na altura em que começou a trabalhar, não havia cursos de cabeleireira. «Tenho um diploma obtido na Escola de Profissionais de Cabeleireiro do Algarve, em Faro, por trabalhar há muitos anos nesta actividade», referiu Maria Rosa, que já se deslocou, nomeadamente à Expo-Matosinhos e ao Casino Estoril para acompanhar sessões ligadas à sua profissão, em busca de formação. De resto, foram boas experiências para esta profissional, como a própria reconheceu: «Nesses encontros, aprendem-se basicamente técnicas. No Casino Estoril gostei de ver um cabeleireiro estrangeiro muito famoso. Com outros, também aprendi sempre qualquer coisa. Noutras vezes, o que eles fizeram nessas sessões já eu sabia, mas foi sempre bom vê- -los trabalhar. Eu ia sempre a esses encontros, sempre que havia penteados promovidos por marcas. Mas desde que o meu marido faleceu nunca mais fui, apesar de me terem convidado para lá ir».
Noutros tempos, as marcas de produtos de cabeleireira também ofereciam viagens e Maria Rosa não desperdiçou a oportunidade de conhecer outros locais, percorrendo o mundo. «Tal como outros participantes nesses encontros, fui aos Açores, à Grécia, Itália, ao Brasil, México, França, Inglaterra. Gostei muito dessas experiências. Itália foi o país que mais gostei de visitar. Roma tem muitos locais históricos, é uma cidade que me atrai, que me diz qualquer coisa. Só fui visitar monumentos, enquanto as minhas colegas iam às compras», lembrou.
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Quis trazer «trinta putos de rua» do Brasil para Portugal. «Os mocinhos agarravam-se a mim e já não me queriam largar» (...) «Gostei muito do Rio de Janeiro, que tem vistas maravilhosas. Mas a pobreza é de uma pessoa ficar arrepiada».
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Apesar de ter ficado deslumbrada com as paisagens do Brasil, Maria Rosa não esquece a pobreza que encontrou no Rio de Janeiro ao ponto de até querer trazer para Portugal nada menos do que «trinta putos de rua», como referiu o filho, Miguel, ao assistir à entrevista. «É um pobrezinho, vou levar. Os mocinhos agarravam-se a mim e já não me queriam largar. Eu dizia- -lhes: querem um sumo, um sorvete? Tudo bem. Dinheiro, não. Gostei muito do Rio de Janeiro, que tem vistas maravilhosas. Mas a pobreza é de uma pessoa ficar arrepiada. Nas favelas, então… Fui ver uma e disse não quero ver mais», concluiu Maria Rosa, enquanto mudava de sala para continuar a tratar o cabelo de uma cliente.
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Só conseguia trabalhar quando o filho ia jogar à bola para a rua com os amigos
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Enquanto a cabeleireira Maria Rosa trabalhava, o filho, no meio da sua traquinice de miúdo, muitas vezes passava o tempo a jogar à bola na rua, com amigos : «o Carlos Mesquita, o Rui Catarino, o Alcides, o Humberto Guilherme, o Carlos "Bilú", entre outros», apesar do trânsito na altura, e da polícia a controlar infracções. Na memória desses tempos, Miguel Silva, hoje com 54 anos de idade e técnico de som, até recordou a gulosice, de que resultava “Bolas-de- -Berlim roubadas” da pastelaria Rubi, do “Chico Silva”, também situada na Rua Cândido dos Reis e a poucos metros do salão da sua mãe e “à venda do Freire”. No salão da sua mãe é que o Miguel não podia ficar. «Ela garreava sempre comigo. Porquê? Porque eu fazia muitas asneiras. E ela só conseguia trabalhar quando eu ia para a rua jogar à bola (risos). E mesmo assim não descansava».
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«Nunca quis que a minha mãe me cortasse o cabelo»
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Curiosamente, lembrou Miguel, “nunca quis que a minha mãe me cortasse o cabelo, porque havia sempre discussões, ‘corta aqui, corta ali’». E acrescentou: «O meu barbeiro era o Nelinho. Hoje, vou a um salão de um brasileiro, em frente ao ‘Manel das bicicletas’, o Emanuel. E de 1975 a 1980 não cortei o cabelo», recordou. «Por isso, nas equipas de iniciados e juvenis do GDAL (Grupo Desportivo Amador de Lagos), era o jogador com maior cabeleira». Miguel jogou futebol, atletismo, fez patinagem de velocidade e hóquei em patins, tendo mesmo representado clubes da Primeira Divisão. Juntamente com Paulo Batista, fundaram a secção de patinagem (hóquei e patinagem de velocidade), que mais tarde deu origem ao Roller Lagos e ao sucesso que se conhece.
Mas o tal traquinas é um homem multifacetado, já foi Professor, prelector em distintas áreas (Desporto, Música etc. e em variados eventos).
Falar deste senhor, só é possível através de uma entrevista exclusiva ao Correio de Lagos, que já está a ser preparada.
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Reportagem da edição impressa do Jornal Correio de Lagos.