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O antigo Convento da Trindade (Lagos) e a História dos Lugares que hoje não têm História

O antigo Convento da Trindade (Lagos) e a História dos Lugares que hoje não têm História

Artigo da revista Nova Costa de Oiro em https://www.novacostadeoiro.com

As ruínas e os espaços abandonados estão associados ao silêncio, às sombras e ao vazio, contudo, se olharmos atentamente para esses locais, a voz do seu silêncio torna-se poderosa e reportará sobre as vidas, as vivências e as experiências daqueles que foram as razões de ser desses espaços, hoje destruturados.

Em Lagos, no meio da sua solidão e simbolismo de um tempo passado que continua a durar e a perdurar na identidade local, merece destaque um espaço que constitui (para muitos) um ilustre desconhecido a que podemos aceder pela Travessa da Trindade.

Andando um pouco, deparamo-nos com uma antiga entrada atrás da qual se situam as ruínas de um antigo convento que foi, mais tarde, hospital da Marinha: o Convento da Trindade. Se no tempo presente tanto se fala de Globalização, o que é um facto é que ela teve o seu início em épocas bem remotas e o processo que deu origem a este convento é um bom exemplo disso.

No Século XVI, pessoas das mais diversas origens cruzaram-se ou estabeleceram-se em Lagos. Foi o que aconteceu com alguns nobres Sicilianos (de Messina) e outras gentes vindas de Milão e de Génova.

Em 1553, estes estrangeiros fundaram no actual Rossio da Trindade a Igreja de Nossa Senhora do Porto Salvo e deram origem a uma Irmandade que acolheu, também, gentes de Valência e da Catalunha. Aconteceu, entretanto, que os religiosos da Ordem da Trindade (mais conhecidos por Trinos) intentaram construir no local – então Rossio de São Brás, por ali se situar a Igreja dessa invocação – um convento, contando com o apoio do Bispo D. Fernando Martins Mascarenhas (Bispo do Algarve entre 1594-1616), que para tal escreveu à Câmara de Lagos em 7 de Março de 1597.

Após um conflito de interesses com a Irmandade, as duas partes entraram em acordo, no dia 27 de Julho de 1600, num acto em que estiveram presentes o Governador do Reino do Algarve, Rui Lourenço de Távora, e Rodrigo Rebelo Falcão, Escrivão das Almadravas.

Por esse acordo, a Irmandade fez cedência da igreja aos religiosos Trinitários, que assumiram o compromisso de continuarem a realizar os serviços religiosos e fúnebres que até ali tinham decorrido naquele templo. E assim se instalou em Lagos, em 1605, a Ordem da Santíssima Trindade, vocacionada para o resgate de cativos.

A sua presença foi muito importante numa faixa costeira frequentada pelos corsários e piratas norte-africanos que aqui cometiam as suas depredações. Vindos das costas atlântica e mediterrânica do Norte de África e até da Turquia, flagelaram as armações de pesca (como aconteceu nas de Almádena e Burgau), atacaram localidades (como a Carrapateira), cercaram fortificações (como a da Baleeira, em Sagres), assaltaram fazendas (obrigando à fortificação dos figueirais, por exemplo) e levaram pessoas cativas consigo, normalmente capturadas em navios que eram atacados nas costas da zona.

Numa altura em que se alude frequentemente à Escravatura e ao tráfico negreiro (de Escravos Africanos para a América e Europa), é importante não esquecermos que a cidade de Argel constituiu, durante séculos, um dos principais destinos de um outro tipo de Escravos que é, quase sempre, ignorado: os Escravos Europeus capturados em vários pontos costeiros desde o Oceano Atlântico ao Mar Mediterrâneo.

Muitos deles foram Portugueses e, particularmente, do Algarve, sendo o Cabo de São Vicente um dos locais costeiros mais propícios à ocorrência deste tipo de situações dada a sua situação geográfica e ao facto de ser um dos principais pontos de referência e confluência para as diversas rotas de navegação. O Convento da Trindade apresentou uma planta de formato quadrangular, tendo o claustro e o seu poço como centro, em torno dos quais se encontravam diversos corpos (sendo um deles a igreja) com dois pisos.

O Terramoto de 1755 destruiu-o. Anos depois, em 1762, o padre ministro da Ordem solicitou à Câmara de Lagos que indicasse 3 pessoas para que uma delas ocupasse a vaga de tesoureiro da Igreja da Raposeira, no sentido de se recolherem esmolas para a reconstrução do convento.

A 13 de Março de 1789, o Coronel do Regimento de Artilharia do Reino do Algarve, Teodósio da Silva Reboxo desenhou os perfis do convento, às ordens do Conde de Vale de Reis, então Governador e Capitão-General do Reino. No Século XIX, a antiga casa religiosa deu lugar ao Hospital da Marinha e nos finais dessa centúria passou à posse de um particular.

A Ordem da Santíssima Trindade para a Redenção dos Cativos foi fundada, nos finais do Século XII, pelos Santos João da Mata e Félix de Valois. Desenvolveu a sua acção em torno de uma especial adoração da Santíssima Trindade, de um modo de vida evangélico e de uma obra social vocacionada para o resgate dos cativos em terras muçulmanas e para a realização de obras de misericórdia.

Em Portugal, depois de um interregno na sua acção, os religiosos Trinitários voltaram, em 1561, a realizar o resgate dos cativos e a angariar esmolas para essa finalidade. Dada a sua realidade quotidiana, a sua localização, o seu estatuto à época e a sua proximidade das terras de África, Lagos inseriu-se perfeitamente no espírito de acção da Ordem.

Aliás, a necessidade do resgate dos cativos locais e a apetência dos religiosos Trinos para o fazer, foram argumentos preponderantes utilizados pelo Bispo do Algarve D. Fernando Martins Mascarenhas na sua carta à Câmara de Lagos para a construção do convento da Ordem na cidade, que viria a ser fundado sob a égide do Governador Rui Lourenço de Távora e do seu cunhado D. Miguel de Almeida.

Ao longo da sua existência este convento esteve ligado a diversos resgates ocorridos, por exemplo, entre 1580 e 1627, em Argel, Tetuão, Fez e noutros pontos de Marrocos. Nas negociações para a remissão dos cativos, nesse período, participaram os seguintes religiosos do convento Trinitário de Lagos: Freis António de Alvito, Manuel de Évora, Inácio Tavares, António da Conceição, Dionísio de Faro, Mateus da Esperança, Paio de Lacerda, Inácio Tavares de Jesus, Luís da Guerra, Paulino da Apresentação, Nicolau de Oliveira, Filipe Ribeiro, André de Albuquerque, Manuel do Espírito Santo, António da Assunção, António da Cruz e João da Silva. Graças à sua intervenção, mais de 6291 pessoas foram resgatadas do cativeiro em terras do Norte de África, entre esses anos, o que demonstra bem a importância desta realidade social e institucional.

Entre os anos de 1599 e de 1641, sabemos que este convento teve 16 Superiores. Com a extinção das Ordens Religiosas Masculinas em Portugal, ocorrida em 1834, as autoridades procederam à inventariação dos bens pertencentes aos conventos entretanto encerrados.

No caso do Convento da Trindade de Lagos, documentação que nos foi possível consultar, permitiu concluir que aquela casa religiosa era formada pela propriedade do próprio convento e pela sua cerca.

Tinha, também, 27 Foros em géneros, de que recebia, todos os anos: 244 Alqueires de trigo, 31 de milho, 3 galinhas e 1 arroba de figos. Acresciam ainda 18 Foros a dinheiro no valor de 41$800 réis. Por sua vez, o convento estava obrigado a uma pensão de 11 ¼ Alqueires de trigo e à realização de 40 missas cantadas e 80 rezadas. Tinha 2 prédios avaliados em 705$000 réis.

Fruto da acção do Tempo e das suas metamorfoses, o que resta materialmente do antigo Convento da Trindade de Lagos, continua a testemunhar sobre vidas e épocas desaparecidas, sobre um Passado vivo e activo.

E estas são apenas algumas das Memórias que são de um convento, mas também de uma cidade, de uma região e de um país, que aqui evocamos. Hoje ocorre, curiosamente, um processo inverso.

O espaço actual de implantação desta antiga estrutura conventual não tem outra História a não ser a que está agregada às suas próprias ruínas que lhe dão dignidade e a sua própria designação de Trindade.

E esta Trindade não é o que ali se encontra nas proximidades. É o antigo Convento, a sua acção e a sua Memória. E tudo isto é um reflexo do que se passa hoje em dia nas nossas aldeias, vilas e cidades, cuja alma se está a perder com o desaparecimento das Pessoas que aí viviam e as dinamizavam. Restam, pois, as Ruínas das estruturas conventuais e as suas Memórias que se prolongam, enquadradas pelo fabuloso cenário dos rochedos dourados da Costa de Oiro, até ao vasto e infinito Oceano, a esse Oceano que levou os esforços dos religiosos Trinos à África do Norte na sua missão redentora e libertadora das gentes portuguesas reduzidas à Escravatura.

E restam esse Mar e esse Céu sempre azuis e sempre infinitos que nos transportam a novos mundos, novas experiências, novas Memórias e novos sonhos, como desde sempre o fizeram e como continuarão a fazer.

Artur Vieira de Jesus, Licenciado em História

Ver o nosso vídeo, nesta ligação: https://youtu.be/oKPdoqyj3Is

Bibliografia: - CORRÊA, Fernando Cecílio Calapez, “A Cidade e o Termo de Lagos no Período dos Reis Filipes”, Lagos, Centro de Estudos Gil Eanes, 1994. - LOPES, João Baptista da Silva, “ Corografia ou Memoria Economica, Estadistica, e Topografica do Reino do Algarve”, Lisboa, Tipografia da Academia das Ciências de Lisboa, 1841. - MARADO, Catarina Almeida, “O processo de formação da rede monástico-conventual do Algarve (1189-1834) in Revista “Promontória”, Ano 9, Número 9, Faro, Universidade do Algarve, 2011. - “Ordens Religiosas em Portugal – Das Origens e Trento – Guia Histórico”, Direcção de Bernardo Vasconcelos e Sousa, S.L., Livros Horizonte, 2006. - PAULA, Rui, “Lagos, Evolução Urbana e Património”, Lagos, Câmara Municipal de Lagos, 1992. - ROCHA, Manuel João Paulo, “Monografia de Lagos”, Faro, Algarve em Foco Editora, 1991. Fontes Digitais: - Arquivo Distrital de Faro – “Cópias dos Inventários dos extintos Conventos” e “Relação dos Prédios dos Conventos Extintos – Caderno 2.º”. - Biblioteca Nacional Digital - https://purl.pt/27790

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